Béla Tarr – o magiar que testemunhou a falibilidade da vida nos seus longos e ininterruptos takes. Que nos esgaçou as pálpebras e pela retina adentro nos enfiou a certeza de que a condição humana namora perpetuamente noções de clausura, repetitividade, violência e inexorabilidade. Que, em “A torinói ló”, fez da pobre batata cozida um símbolo do vazio e inquietação. Tarr deixa-nos sempre sozinhos. E estar somente connosco não é coisa fácil.

A obra de J.R. Robinson é também ela um cataterismo de alma – não há então inocência na escolha de Wrekmeister Harmonies [trocadilho subtil com a magnum opus do realizador húngaro] para nome de baptismo do seu desiderato musical. À semelhança deTarr, o que Robinson propõe é um exercício de introspecção. E fá-lo também num só take: “Then It All Came Down” [inspirada timidamente no ensaio de Truman Capote escrito após uma entrevista místico-ocultista com Bobby Beausoleil, fulano próximo de Charles Manson] não se fragmenta, apenas se subdivide em três movimentos.

O primeiro cumpre-se nos dez minutos iniciais. Escuta-se a guitarra, acústica e ecoante, em crescendo. Há a seu lado o angelical adorno de uma voz feminina – imaginamo-la seráfica, sepulcral, desenhada sobre um fresco litúrgico –, silenciada bruscamente pelo grito incógnito. Como súbito aguaceiro, desprende-se o segundo movimento, num majestoso cordel orquestrado; pense-se no mais recente LP dos Wolvserpent e no seu maravilhoso colóquio entre violino e guitarra. Estaremos próximos. E mais perto ficamos quando também essa sobrenatural conversa é apunhalada à queima-roupa pela distorção – a humanidade, com a malquerença que lhe é inevitável, chegou.

Esse terceiro e último movimento rouba-nos a escadaria celestial oferecida pelos dois anteriores. Caímos aos repelões, sob batuta de uma guitarra lentamente impiedosa. Os ensurdecedores berros brincam no carrossel sanguinários dos Khanate, onde também mora a bateria totalitária e chefe-única do ritmo delongado.

J.R. Robinson não cumpriu esta dantesca jornada sozinho. O vislumbre do céu e o acordar para o inferno representado na meia hora de “Then It All Came Down” tem a responsabilidade espalhada nas mãos de notáveis figuras como Sanford ParkerBruce Lamont, Chanel Pease ou Chris Brokaw, entre outros; anjos e demónios de uma ensemble que estreou ao vivo no inóspito Bohemian National Cemetery em Chicago, sob luar cheio.