Associamos por teimosia o psicadelismo – já de si abstracto – à extroversão. Natalie Mering, que se protege na persona Weyes Blood, constrói tímidos pedaços de sonho folk, mapeados em boulevards submersas pela neblina. Há nela e na sua mythopoeia cancionária réstias poucas de convencionalidade e é isso que nos atrai a conhecê-la.

Como te encaminhaste para a música? Li que os teus pais tiveram um papel importante.

Sempre gostei de música, mesmo quando jovem. O meu pai tinha projectos new wave nos anos 80, apesar de, perante nós crianças, ter mantido oculto esse seu lado. Assim que descobri, influenciou-me bastante. E o Kurt Cobain foi também uma figura bastante marcante nos meus primeiros anos enquanto criadora.

Que instrumentos aprendeste primeiro? E qual o primeiro com que te sentiste confortável?

Comecei pela guitarra e pelo piano na mesma altura – e o piano revelou-se sempre confortável, pois nele era tão simples escrever canções. Durante muito tempo, na guitarra, apenas soube dar um Mi menor, mas foi com esse acorde que consegui muito.

A maioria começa por imitar as suas referências. Quais as personalidade e bandas que tentaste emular nos primeiros tempos?

Eu gostava muito de Syd Barrett Tyrannosaurus Rex – tentava imitá-los. Os Sonic Youth foram outra grande influência, assim como música clássica do séc. XX e a fase embrionária da electrónica. Quase todo o espectro estilístico, na verdade. Trabalhei numa loja de discos e expus-me a uma enorme variedade.

E quando sentiste aquele ímpeto para criar os teus originais?

Desde o início, quando era uma criança entretida com o Mi menor, eu preferi escrever os meus temas ao invés de reinterpretar outras canções. Num recital de piano, o meu professor deixou-me tocar um original meu, pois era a peça que mais ensaiava e a que melhor sabia. Essencialmente, todo o meu conhecimento musical foi adquirido a escrever.

Algures no tempo, nasceu Weyes Blood. Quando foi? E porquê a referência a Flannery O’Connor?

Eu tinha quinze anos e Weyes Blood nasceu logo após ter lido olivro. Senti que o meu destino era adoptar esse nome. Atravessava uma fase em que ouvia bastantes coisas da K Records e tive a sensação de que não poderia tocar com o meu nome de nascimento, mas sim com um nome artístico.

Sobre o teu novo disco, “The Innocents”, há nele uma referência ao filme homónimo de 1961?

Não é uma referência. O conceito de todo o registo debruça-se sobre a inocência perdida. Há uma parte da população que vagueia por aí influenciada por filmes que lhes explicam o que é a vida – e depois essas mesmas pessoas acabam por descobrir a realidade.

Há algo que nos leva atrás no tempo em “The Innocents”. A uma era onde a expansiva psychadelia se cruzou com o folk introvertido. Tentas arrastar quem te escuta para o passado?

Se quem me ouvir quiser viajar até outra era, claro! Toda a grande música se revela intemporal, e é isso que eu procuro. Mas, no final, espero que as minhas criações soem ao séc. XXI. Espero que tenham uma alma que não seja somente a cópia do que já foi feito.

Trataste de todo o processo de gravação? Aprendeste sozinha? E preferes trabalhar em modo analógico ou digital?

Neste disco, deixei que outras pessoas me auxiliassem na gravação, coisa que possivelmente não repetirei no próximo. Sou predominantemente auto-didacta e tenho preferência pelo analógico. Grande parte do “The Innocents” foi gravado em tape-deck e depois convertido digitalmente, para os overdubs. Usar os dois métodos é o melhor caminho nesta era. Em suma, o modo analógico é mais fácil de manipular para que soe muito bem, mas mais difícil de editar. O digital deixa-te tão confuso com a vastidão de opções, que te leva a pedir ajuda de um profissional para decidir.

Inspiras-te também nas viagens que fazes. Que sítios influenciaram o “The Innocents”?

O Kentucky rural, o New Mexico, a Pennsylvania – Narberth, especificamente, onde grande parte do disco foi gravado. Narberth é um pequeno subúrbio nos arredores de Philadelphia com velhas casas e velhas árvores. Tantas histórias e fantasmas. Gravámos grande parte do álbum numa casa antiga que não tinha qualquer aquecimento. Fizemo-lo vestindo grandes casacos e usando luvas de pontas rasgadas.

Já estiveste em Portugal? Tens connosco alguma ligação especial?

Sim, estive em Portugal duas vezes. É sempre um dos meus sítios favoritos nas digressões europeias, pois traz-me à memória a Califórnia – o Estado de onde sou originária. Lembro-me de ver a Golden Gate Bridge e recordar-me das qualidades de Lisboa e San Francisco, e das suas similitudes. Toquei aí num festival em 2007, num edifício que acabaria por ser demolido no dia seguinte – 20 outras bandas actuavam nesse dia, em salas distintas. Levei comigo uma maçaneta de um antiga porta como recordação, e ainda a tenho. Também adoro o marisco e como sempre óptimo peixe e ovas. Os grelhados têm carisma, como diriam os meus amigos portugueses, que mostram sempre o cuidado de me levar pelos lugares e discutir o que eu vou sentido ao observá-los. Um sítio verdadeiramente romântico e muito nostálgico para mim.

António Lobo Antunes, o reputado escritor português, diz que quando escreve não sabe quem escreve. Que há uma força estranha que o impele. Tens a mesma sensação quando compões?

Sem dúvida. Há como que um relâmpago de inspiração. Ele vem, sem ser intencional. Temos de o deixar acontecer e temos de nos ouvir enquanto acontece. A maior parte da composição musical passa por escutar estes feixes de inspiração a fluir.

Vais tocar com banda? É-te difícil partilhar criações individuais com músicos externos e deixá-los que as alterem?

Vou a solo! Mas tenho tocado com uma banda nos Estados Unidos. À primeira, é um pouco estranho, tendo em conta que me mantive sozinha por muitos anos. Ganhas uma certa espontaneidade e um certo controlo que levam imenso tempo a replicar quando acompanhada. Mas há momentos de sincronia em que todos estamos na mesma página, emocional e tecnicamente. É difícil explicar por palavras, mas é um sentimento completamente intoxicante, talvez a minha sensação musical favorita.

Diz-nos uma cidade onde gostasses de actuar e um momento histórico que gostasses de viver.

Adoraria ter visto o Titanic afundar-se. Não sei se se pode considerar mórbido, mas sou totalmente fascinada pelo acontecimento e pelo orgulho que os náufragos revelaram. E, se pudesse tocar em qualquer cidade, escolheria uma que está agora debaixo de água com místicos seres meio alienígenas – Atlântida.