A ameaça do dia anterior confirma-se como a tradição milenar de Paredes de Coura. Acordamos tarde e a más horas, ainda derreados da tareia sonora do dia anterior, com o batuque da chuva nas árvores e hortas. E apesar de não se formarem mais que aguaceiros, a intermitência do sol arrasta os campistas para as lides domésticas, arrumando malas e roupas, e para as esplanadas da vila, onde decorrem concursos de levantamento do copo e tertúlias sobre raparigas e desventuras nocturnas. A passagem pela zona do rio revela pouca gente deitada e ainda menos aventureiros despidos. O tempo desaconselha mergulhos, mas somos feitos de homem e molhamos os pés, quase perdendo um dedo na epopeia. Despertamos assim abruptamente para os concertos da tarde, depois de digerir a triste notícia de que o Pokémon que havíamos deixado no ginásio da vila fora derrotado.

Afogamos as mágoas na chegada ao recinto no curto concerto dos leirienses First Breath After Coma, nome que pediram emprestado a uma grande malha dos Explosion In the Sky, seguindo o seu pós-rock de forma pouco fiel e bem mais positiva, orgânica e ecoante, incluindo nele vários elementos de um indie descontraído e agradável, e puxando pouco à contemplação e mais ao despontar do sentimento. O talentoso Noiserv viria ainda a entrar em dois temas do concerto, desequilibrando a rotina instrumental de forma mais provocante. Já Kevin Morby vira o sentido de urgência e baixa o ritmo deste fim de tarde, assumindo a abertura do palco principal com a fragilidade do seu folk contemplativo, contador de histórias e denotador de sentimento. A clareira à sua frente está composta de gente, enchendo o pedaço que certa vez fora de relva, desgastado pelas pisadas e danças de centenas de pessoas, mas pouco mais. Intimista, o cantautor norte-americano e outrora membro dos saudosos Woods exige atenção e sensibilidade na digestão da malha etérea que cria, características difíceis de encontrar em ambiente de festival, mas que provavelmente terá quando voltar ao nosso país em Novembro, a Espinho.

E discutindo sentimento, não o negaremos nunca num concerto dos Sean Riley & the Slowriders. Isto porque é inevitável mencionar a banda sem nos lembrarmos que, pouco tempo depois de terem lançado o novo álbum, viram desaparecer-lhes um dos membros mais queridos, o baixista Bruno Simões. Ainda assim, e por sentirem que ele assim o quereria, pegaram em si e continuaram a tocar, fazendo honrar a memória do seu colega e amigo. E tanta mais força ao seu folk soturno e pesado deram, tocando com uma vontade palpável e um virtuosismo enorme, a que Paulo Furtado, ou o Legendary Tiger Man, veio adicionar perícia e rasgos de blues estimulantes e corpóreos a uma estrutura sólida, mas que destas aventuras tanto necessita para sobressair verdadeiramente.

A tarde tornava-se noite quando os norte-americanos Crocodiles assumiram honras de palco principal, eles que se revelaram anfitriões distendidos de um psicadelismo lo-fi altamente diluído, quase líquido de tão depurado, deslizando de forma agradável entre músicas e diálogo, mas no fim pouco memoráveis. Melhor tratamento nos deram os Psychic Ills, duo criativo que se apresentou em quadra performativa, e peritos na mestria da languidez hipnotizante do psicadelismo desértico. Assente em linhas circulatórias de teclado e guitarra, de onde deveria sobressair com destreza o baixo, mas que em Coura pouco soou, o som dos nova-iorquinos leva-nos ao cenário da eterna Route 66 e àquelas que parecem eternas viagens por paisagens áridas, temperaturas que a pouco movimento obrigam, e ao tempo que parece não passar, mantendo-se ecoantes mas estáticos, apenas para apreciador degustar.

Do marasmo para uma explosão sónica intensa, apenas precisámos de passar de um palco para o outro. Isto porque entretanto começou a tocar a banda com o melhor nome do festival, e logo desde o início com riffs imensos de guitarra que nos sopram o cabelo para trás e arrepiam a pele – são eles os King Gizzard & the Lizard Wizard, a partir daqui também referidos como o “concertaço” do dia. Olhamos para o palco e tudo o que vemos é um conjunto de sete miúdos desgrenhados a mover-se freneticamente por entre a amálgama instrumental, duas baterias como os Thee Oh Sees antes deles, mas que tocam e agem com um espírito e uma vontade desmedidos, fazendo extravasar um progressismo ácido que parece ali combinar elementos do garage e do surf rock característicos de bandas californianas, adicionando-lhes intensa urgência e o intuito de muito literalmente “partir tudo”. As roupas voam-nos do corpo com o turbilhão que nos assola, e à nossa volta passamos a ver muito pouco e a respirar menos ainda, tamanha a nuvem de pó que entretanto é levantada pela dança electrizante que entretanto tomava conta de quem estava à nossa volta. Enormes, gigantescos e com um potencial ainda maior, os australianos deixam-nos de língua de fora e fazem-nos questionar o porquê de tocarem tão cedo.

A resposta viria mais de duas horas depois, e seria dada pelo próprio público. A enchente do dia anterior havia sido compreensível, mas não esperávamos de todo que se voltasse a repetir após o concerto dos LCD Soundsystem. Muito nos enganámos e há que dar a mão à palmatória da organização, pois não havíamos dado crédito suficiente ao alinhamento do final de dia desta sexta-feira, mas de facto pouco espaço encontramos na audiência para assistir em condições à entrada dos Cage the Elephant, que pela segunda vez levaram ao êxtase o Vodafone Paredes de Coura.

Repararão que saltámos duas horas de espectáculo, e resta-nos justifica-lo com a falta de interesse total nos concertos que as preencheram. E não por princípio, porque fizemos parte do público em ambos; estivemos lá quando o multi-instrumentalista Jacco Gardner nos quis encantar com o seu jeito barroco, falhando miseravelmente a construção da atmosfera fantasiosa e digna de uma corte real à antiga a que nos habitua em estúdio, apenas conseguindo de nós bocejos e frustração; e sentámo-nos no topo da colina olhando o jogo de luzes dos The Vaccines, único ponto de interesse neste abismal marasmo repleto de clichés mal cumpridos e uma imensa e chata previsibilidade, a ponto de darmos por nós a tentar bater recordes nos jogos do Messenger, a tentar vislumbrar um Pokémon para apanhar, ou a aceder à transmissão do concerto a 360o e tentar descortinar o que tomaram os tipos da fila da frente para aguentarem esta audição.

Voltamos então aos cabeças Cage the Elephant, afinal caso sério de estudo; tanto pela energia que o vocalista Matt Shultz despende em palco de início ao fim, completamente desgovernado e muitas vezes falhando tons e letras devido ao movimento, como pela aderência do público ao espírito inocente da banda, que se fazem oscilar entre a fragilidade meditabunda e sôfrega de uma quase balada em que parecem questionar o mundo em seu redor, e a furiosa e energética demonstração de uma irreverência desgarrada e gritada até rasgar, como se de um adolescente se tratasse. E serão mesmo os mais jovens a saberem as letras de quase todas as canções, a saltarem para as costas uns dos outros e a unirem-se em moshpits violentos, ou a atropelarem-se numa euforia desbarata para tocar no guitarrista e irmão de Matt, Brad Shultz, que não poucas vezes se encosta ao gradeamento de olhos fechados, embalado pelo indie tão punk que faz deslizar das suas inconstantes dedilhadas na guitarra. Eventualmente serão eles a serem levados em braços, num crowdsurf que materializa a relação simbiótica e apoteótica com o público de Coura, “o melhor público do mundo”.