O Under The Doom já se tornou, ainda que com intermitências, numa referência incontornável dos grandes concertos de doom de pendor mais extremado. Em anos anteriores ficaram retidas as passagens de Rorcal em 2011 e no ano passado o enterro que foi Mourning Beloveth no mesmo espaço da edição de 2016.
Se é verdade que as fronteiras do festival sempre foram algo fluídas (embora a tendência base seja bastante clara), este ano com a inclusão de Foscor e sobretudo Primordial, houve uma clara expansão estilística que se saúda e parece ter dado excelentes resultados atendendo à enchente que se fez sentir com particular incidência para o primeiro dia de festival.
A história deste primeiro dia começa-se a contar com Nevoa, projecto oriundo do Porto e cujo álbum de estreia – “The Absence Of Void” – foi uma das mais sólidas propostas lançadas em território nacional do ano passado. Talvez pelo enquadramento ou talvez já fruto das futuras mutações que a banda já anunciou tendo em vista o próximo trabalho, o concerto decorreu numa toada mais lenta face ao que é apresentado em estúdio. Ultrapassados os primeiros problemas técnicos (tradicionalíssima corda partida), assistiu-se a uma viagem por cantos que têm tanto de negro como belo remetendo para espaços de isolamento voluntário. Se ainda há um caminho a percorrer para que a coesão instrumental seja tão abrasiva como em estúdio, a verdade é que Nevoa já é um caso sério no panorama de black metal português.

Nevoa
Quem eventualmente tivesse estado numa longínqua noite de 2007 em Corroios talvez se lembrasse de Foscor. Os catalães eram na altura uma banda com “The Smile Of The Sad Ones” na bagagem e com muita vontade de espalhar o terrorismo sónico sem grandes desvios às linhas mais tradicionais do black ,etal norueguês. Passados quase nove anos muita coisa mudou: a banda enveredou por uma linha claramente progressiva deixando para trás a ortodoxia e o som tornou-se mais denso e multifacetado. O que infelizmente não mudou foi a capacidade da banda dar um concerto verdadeiramente memorável. Pese embora a curta duração foi notória a dificuldade de transpor a complexidade de “Those Horrors Wither” para palco nomeadamente nos vocais limpos e nas texturas de guitarra que enriquecem o álbum. Exemplo perfeito para demonstrar que complexidade acrescida não significa interesse acrescido.

Foscor
O regresso às sonoridades mais usuais deu-se com Painted Black. Ainda em processo de gravação do sucessor de “Cold Confort”, a banda parece afastar-se cada vez mais de territórios ligados ao death/doom e a seguir por caminhos mais melódicos como deu para perceber na nova faixa apresentada no RCA. Marcado pelos momentos envolventes e mais melancólicos, o concerto foi ainda assim algo morno e só por vezes entusiasmante. Ainda assim a competência está lá toda e o potencial para um digno sucessor do primeiro registo também.

Painted Black
Não será exagerado afirmar que a maioria dos presentes no RCA se tinham deslocado com o claro intuito de assistir a mais uma celebração da máquina de produzir épicos que é Primordial. A carreira de décadas dos irlandeses (e Nemtheanga não deixou ninguém esquecer-se da proveniência) é atravessada por momentos de grandiosa celebração cultural e património histórico com especial incidência para a narrativa bélica. Convenha-se que é fácil cair em terrenos escorregadios em especial quando se trata de um vocalista tão presente e com um alcance tão pouco comum. Há géneros inteiros inconscientemente dedicados a um património histórico bem mais ligado ao Alentejo português e se não fossem tão bons os Primordial podiam facilmente ser dignos embaixadores. Felizmente são “só” uma banda com uma capacidade incrível de debitar malhas atrás de malhas transformando o concerto num clímax quase permanente. O combo de entrada com “Where Greater Men Have Fallen” (que tema perfeito para começar qualquer concerto), “Gods To The Godless” e “No Grave Deep Enough” não só lançou o mote como ecoa ainda pelos parcos cantos vazios que estavam na sala. O magnetismo de Averill foi, como habitualmente, um dos factores decisivos para o sucesso de um concerto que teve momentos de verdadeira comunhão entre banda e público. Claro que temas como “Babel’s Tower” ou “The Coffin Ships” ajudam e muito à rendição incondicional, ainda mais com tantos álbuns revisitados. “Empire Falls” encerrou aquilo que habitualmente seria o fim de uma actuação já de si plenamente conseguida mas um pouco incaracteristicamente a banda regressou ainda para “Sons Of The Morigan” e só depois fechou uma aparição sem mácula ao cabo de quase duas horas.

Primordial