Quando passamos horas e horas a escrever sobre música, a noção de que, por esta altura, há um certo domínio na transformação de frequências em ideias inteligíveis já nos está enraizada. Mas, depois, há quem inverta o processo. E é quando isto acontece que o papel do escriba – o mais triste e dispensável de todos os papéis – é realmente problematizado, retirado do contexto quase divino de “crítico” para o de ouvinte, simples e assoberbado. Samsara, de Tiago Sousa, é a música no seu estado mais puro, num instrumento que costuma servir de ponto de partida. Para o músico do Barreiro, o piano não serve de propósito, mas como objectivo, onde as suas ideias convergem.

Nesse aspecto, Samsara, despindo-me da tarefa de criticar, leva-me a constatar que serve o seu propósito narrativo, não se tornando denso, nem cansativo por demais, vale enquanto obra total, impossível de interromper. Tiago Sousa, um pianista autodidacta, não se move pela erudição, mas nem por isso as ambiências de Samsara, um disco profundamente inspirado no conceito de vida, de ciclo, da filosofia oriental – sem, contudo, fazer cedências estilísticas – é um registo simplista ou linear. O álbum, familiar para quem tem acompanhado o trabalho do autor deWalden Pond’s Monk, tem nas dinâmicas o seu trunfo maior. Trata-se de dicotomias, traçadas em intensidades, que colocam em peso e leveza conceitos como morte e nascimento. Para cada crescendo parece haver uma quebra – ou para cada salto uma queda.

A derradeira queda, com uma reverberação assustadora, de agudos e graves, encerra o disco da mesma forma que este se inicia – com a mesma pausa. É nesta noção que o disco se revela como um todo, não sendo possível a sua interrupção.

O piano, à falta de provas em contrário – o que não me parece uma assunção válida –, é um instrumento completo como poucos. Tiago Sousa desenvolveu uma linguagem própria, ainda que pejada de uma sonoridade que não é, de todo, estranha, nem descontextualizada daquilo a que possamos estar habituados. Mas o contexto filosófico de Samsara dá-lhe uma dimensão quase ensurdecedora. Estes quatro trechos serão os seus ‘haiku’, de notas curtas e sentidas as sílabas ao instante.

Tivesse eu o que criticar e diria que Samsara é um disco belo como poucos, verdadeiramente comovente. Mas as ideias falam por si, e este disco podia ser um texto – com a diferença que não serviria para ser compreendido de olhos fechados. Samsara só firma a noção de que tem de haver um lugar especial para Tiago Sousa nos nossos dias.