Rentrée, traduzido à letra, significa reentrada. Mas afinando por um diapasão livre (como o de um tradutor), vamos ler regresso em rentrée. Um regresso ao Teatro Maria Matos, um regresso de Ben Chasny a um país que sente como seu. Em última análise, um regresso a casa, a um local feliz, ao mundo dele que no sábado também foi nosso.
Entregue a si mesmo e aos seus devaneios acústicos, o guitarrista norte-americano ainda que sozinho encheu facilmente aquele palco, que chegou até a parecer pequeno. Ainda que haja quem insista em inseri-lo no primitivismo americano, Chasny recorre mais à linguagem do drone e aos tiques de Davy Graham ou Ry Cooder que propriamente a John Fahey. A reverberação das cordas da sua guitarra, tão prolongadas quanto curtas, mas nunca acicatadas, são capazes – acreditem – de evocar qualquer tipo de memória. Algo que não deixa de ser simpaticamente surpreendente, dada a pose descomprometida e descontraída deChasny.
Ora de pernas cruzadas, ora de pés assentes no chão, de cabeça baixa, com os olhos abertos ou fechados, foi igual a si mesmo. Destaca-se pela óbvia técnica sobrenatural, mas ao mesmo tempo parece-se com todos nós: terreno e sereno. Alguém tão afoito quanto eu estava extasiado com a música celeste de Chasnydeixou escapar um “we love you Ben” que parecia estar a ser retido havia muito.
É engraçado olhar para trás com alguma distância temporal e aperceber-me que isto aconteceu a meio do concerto, mas podia – e deveria – ter sido dito no início, no fim e sempre que Chasnyparava para afinar as cordas, em busca daquilo que ele chamou “the tuning of no return” – felizmente só alcançado no seu esplendor (e psicadelismo) máximo no final do concerto, comAbove A Desert I’ve Never Seen.
Imaginemos por um momento que não estávamos ali. De olhos fechados, estávamos em casa, num ambiente familiar, com odores reconfortantes. E mesmo quando algo negro, ameaçador ou desconhecido se fazia sentir, éramos resgatados e agraciados com um par de acordes que funciona como um estalar de dedos que nos desperta da hipnose. Sim, a música de Chasny dá espaço que chegue ao sonho. O complicado era mesmo não nos identificarmos com as paisagens tão ricas, as melodias tão pictóricas construídas por aquela guitarra. E é ainda mais difícil escaparmos à voz frágil, mas doce, de Chasny.
A construção de padrões tão concretos como a matéria de que é feita a cadeira onde nos sentimos, era arrancada e feita a partir do ar. Chasny raramente falhou uma nota, mesmo quando a velocidade do seu percurso ao longo do braço da guitarra aumentava um pouco mais. Se os Six Organs of Admittance reflectem o interior do americano, então arriscamos dizer que Chasny é uma pessoa em paz, com felicidade para dar e vender. E uma capacidade de olhar de dentro para fora e de fora para dentro com uma facilidade abismal, que ajuda a criar os ambientes mais confortáveis – e quase mágicos – que podemos adivinhar ao longo de uma música. Drinking With Jack foi um dos melhores exemplos disso.
Puxando dos mesmos galões de retrocesso temporal na nossa mente, quase que podemos tocar na sensação que ficou: a de uma noite recompensadora. Chasny dá-nos mais do que nos tira. Dá-nos a mão para nos puxar gentilmente para o seu mundo. Um mundo que ele conhece bem e no qual nos introduz como se sempre tivesse sido um pouco nosso. Chasny dá-nos aquele tipo de coisas que o mundo real nos insiste em tirar um pouco todos os dias. E só nos consegue dar tudo isso porque, aqui, ele se sente em casa.
Foi assim. Bonito.