Cerelac é uma papa integrante da maior parte da dieta dos meninos e meninas de tenra idade, seja misturada com água ou leite, de há muito tempo para cá. Com o tempo, os meninos e meninas, vão largando a papinha e começando a enfardar substâncias diferentes. Contudo, alguns resistentes lá vão continuando ternurentamente a deglutir a sua paparoca Cerelac em idades mais avançadas. Alguns, mais escondidinhos com medo de lhes serem aplicados alguns daqueles rótulos que apelam à dúvida quanto a sexualidade da pessoa, outros, sem medo de se exporem em público. Mas e o que é que Cerelac tem a ver com Shellac e Mission Of Burma? Primeiro tá fácil, rima com Shellac; Segundo, precisava de uma introdução parva que ao mesmo tempo servisse de metáfora (depois perceberão para o quê); Terceiro, a este ritmo de aumento de impostos secalhar bem ides ter de comer Cerelac todos os dias, é para vos preparardes;

Maio está a ser um mês rico em acontecimentos muito raros e multidionários: ora o Benfica campeão, a visita do Papa, e agora pela primeira vez, live and loud, a visita dos Shellac e Mission Of Burma a Portugal. A diferença é que o Papa e o Benfica foram à pala, e assim até ateus, agnósticos, pagãos, adeptos do Belenenses, do Atlético e do Estoril, quer dizer, toda a gente podia foliar. Para Shellac e Mission Of Burma, a ZDB reservou a especial atenção de por o preço mais alto de sempre num concerto dentro das suas instalações, que é até para ficar mais aconchegadinho e evitar aquelas coisas de ter de se montar um palco no Terreiro do Paço ou ter de cortar o Marquês de Pombal ao trânsito, e claro, evitar ter fãs do Elton John e da Shakira que andariam por ai a deambular depois de terem estado no Rock In Rio.

Foi no referido templo ZDB (esgotadíssimo), então, que, lado a lado, separados por algumas gerações, mas aproximados pela urgência de levar o punk a outras progressões sem que com isso se afecte o seu espírito feroz e cirúrgico, Shellac e Mission Of Burma marcaram encontro pela primeira vez com os fãs tugas para destilar os seus instrumentos. A expectativa era, portanto, grande e os corações batiam já despassarados com ansiedade, numa noite que, apesar da chuva que caía e do fresco que a latejava, iria ser com todas as certezas de calor imenso e intenso, fruto das ondas certeiras que aí viriam.

Eram cerca das 22 horas e 20 minutos do dia 24 de Maio do ano 2010 (Depois de Cristo), quando os Mission Of Burma assaltaram o palco e assumiram o primeiro round, ainda perante um público despreparado que rapidamente, perante o chamamento, se tentou alinhar para receber a primeira oração da noite. Aos primeiros acordes pulsados na faixa 1,2,3 do recente The Sound the Speed the Light(2009) logo se percebeu que por quem toda a gente esperava, era Steve Albini e os seus Shellac, dada a pouca mobilidade que era imprimida aos corpos de cada um dos presentes. Contudo, isso não perturbou minimamente a prestação do trio que num percurso de 13 canções, com obrigatória revisitação ao mítico Vs. (1982), mostrou aos mais leigos as verdadeiras origens do post-punk, dando, simultaneamente, uma verdadeira lição de vitalidade, com Clint Conley (baixista), Peter Prescott(baterista) e Roger Miller, principalmente este com os seus malabarismos elásticos com a guitarra, demonstrando que o factor idade pode ser bem fechado a sete chaves quando o amor pela música e pelo palco ultrapassa todas as barreiras possíveis. Uma verdadeira lição de raw power, cheia daquele espírito psicadélico que varreu os anos 80.

Missão cumprida, dos Mission Of Burma, era a vez da pandilha Shellac agarrar o terreno e demonstrar/confirmar dentro das quatro linhas da ZDB os créditos com que vem alicerçando a sua carreira de 18 frenéticos anos. Para quem não conhece a banda de Steve AlbiniBob Weston (baixista) e Todd Trainer (baterista), parece difícil imaginar que dali possa sair algo sólido e, dentro do seu aspecto aparentemente desorganizado, meticulosamente geometrizado. Isto, a julgar pelo tipo de fato-macaco (Steve Albini), que parece um misto de homem da TV cabo, recluso de Tires e nerd dos computadores, o tipo (Trainer) com ar de junkie profissional ali do casal ventoso e o tipo (Weston) com aspecto de académico radical que dá aulas de Antropologia, e aos fins-de-semana dá uma mãozinha às bandas dos seus amigos, que estavam em cima do palco a tentar montar o seu equipamento e parece que não sabiam bem como.

Já com Steve Albini despido da sua inicial personagem, mas ainda com um arzinho de nerd, mas de nerd a fugir para o freak (aquela técnica especial de amarrar a guitarra à cinta é um tique singular), os Shellac, abrindo com Paco, deram a provar que a sua diferença não se faz notar apenas pela sua atitude anti-establishment, ou aparência pouco convencional, mas sobretudo, pela esquizofrenia electrizante que alimenta cada um dos seus concertos. Matematicamente definidos pelos acertos da desestruturação da canção pop-rock, num percurso que deu choque mais acentuado a partir de My Black Ass, e passando por músicas como Steady As She GoCopperA MinuteSquirrel SongPrayer To GodMam Gina ou The End Of Radio, o trio estilhaçou a noite em pedaços perfurantes em cada um dos presentes.

Alguns desses pedaços incluiram, para além da música, espaços teatrais, como encenações aeronáuticas, movimentos em slow-motion, danças em que o trio se metamorfosea em grupo exclusivamente percussionista, e momentos em que ao público foi dada a oportunidade de colocar questões à banda, onde Weston foi interlocutor. Eis algumas das perguntas e respostas: Porque demoraram tanto tempo os Shellac a vir a Portugal? Resposta – Nós estamos cá!!!; Porque não tocas (Bob Weston) com um baixo Fender? Resposta – Para condizer com a guitarra do Steve; O que acham de Barak Obama? – Resposta – É a única escolha possível tendo em conta a outra opção. Em tom de brincadeira, Weston diria depois que as perguntas eram só para dar tempo para Steve limpar os seus óculos.

O fim do concerto musical, não significou, na noite de 24 de Maio, o fim do acontecimento e interacção com os Shellac, e também Mission Of Burma. Houve um prolongamente em que a barreira entre o palco e os fãs se diluiu, onde todos os que quiseram puderam dar uns dedos de conversa com os diversos membros de ambas as bandas. Isto, sem antes ter havido uma espécie de mini-feira com merchandising, com Steve Albini, qual Sócrates a vender os Magalhães a Chavez, revelando dotes refinados na venda de t-shirts. E, bem, que boa forma de concluir a noite, em amena cavaqueira!!!

Em 1994, fruto do efeito “Steve Albini gravou o In Utero dos Nirvana, ah…e antes,Surfer Rosa dos Pixies”, muita gente se apressou a perceber quem era este homem e inevitavelmente chegar aos projectos musicais em que estava envolvido. Com o tempo, e perda do hype, gradualmente foram arrumando os Shellac no lugar do já está fora de moda, puro e simples – talvez com os Mission Of Burma se tenha passado fenómeno semelhante. Por isso, os Shellac são como o Cerelac. Com o tempo, poucos são os que vão continuando a reservar um tempinho para a preciosa delícia. Na noite da ZDB os Shellac marcaram presença para esses resistentes, que até podem nem comer Cerelac, mas podem dizer: vou-te ensinar uma nova maneira de usares um strap de guitarra.