Quando, em 2011, Sérgio Godinho comemorou 40 anos de carreira, dedicou um conjunto de crónicas a canções alheias, “companheiras de estrada” deste longo percurso. Pé ante pé, as crónicas geraram um livro, depois um conjunto de espectáculos e, recentemente, um disco com 14 temas gravados ao vivo. Mote para uma longa entrevista com o grande cantautor português, porque a conversa é como as cerejas.
Falámos de Chico Buarque, Tony de Matos ou da actualidade de “Os Vampiros” (Zeca Afonso), a propósito de um álbum de versões que, com poucos instrumentos, tentou captar a essência original de cada canção. Ou ainda do talento versátil de Manuela Azevedo e dos laços criados pela cumplicidade musical. Lá para o fim, é inevitável arranjar um espaço para perguntar: e canções novas de Sérgio Godinho? Nem vestígios… para além das letras de três temas novos dos Clã, o horizonte está focado na escrita de contos literários.
Ainda antes do disco, o teu livro “Caríssimas 40 canções” uniu temas de bandas e nomes clássicos: os Stones ou os Beatles do mundo anglo-saxónico, o Zeca ou a Amália em Portugal, o Chico ou o Caetano no Brasil… acaba por ser um panorama da história da música de acordo com a tua visão?
Sérgio Godinho (SG) – Sobretudo, foi um exercício muito pessoal de recuperação das canções sedimentadas na minha memória afectiva. Isto começou há três anos, com as crónicas no Expresso, no âmbito da comemoração dos 40 anos das minhas canções. Como não havia um tema definido, eu disse: “quero falar das canções dos outros, das que foram minhas companheiras de estrada”. Depois disso, estas crónicas redundaram naturalmente em livro, através da editora Abysmo, com quem já tinha trabalhado e que permitia a interacção com a ilustração, que é algo que gosto muito.
Agrada-te essa interacção entre as várias artes…
SG – Sim, sim, gosto muito que umas artes sejam comentadas pelas outras. Mas a ideia era que isto terminasse aí, pois não é bem um projecto. Acontece que uma coisa foi desembocando na outra e este ano o CCB fez-me um convite para a “Carta Branca”. A ideia era que partisse destas canções, pelo que esta carta era branca, mas já estava meio escrita (risos).
E, a partir daí, transformou-se em CD e DVD…
SG – Primeiro fizemos esse espectáculo no CCB e outro na Casa da Música e decidimos gravar esses concertos, porque hoje esses processos são muito mais facilitados. E daí decidimos fechar este ciclo com um CD e uma edição especial com DVD, com sete temas gravados na sala de ensaios
A propósito de todo este ciclo, acabas por referir num texto as sete vidas de uma canção. Mas também podem ser as sete vidas de uma canção em geral, envolvendo a criação, a transformação e a audição?
SG – É… antes da partilha, as canções começam numa solidão criativa, num diálogo comigo mesmo, numa interacção de duas artes: as palavras e a música. De seguida, há a apresentação aos músicos com quem trabalho e há naturalmente transformações, não na essência da canção, mas na forma como ela é tratada. Depois há a gravação em disco e finalmente os palcos, o expoente máximo onde ela é corporizada, onde ela ganha a sua imprevisibilidade, como objecto plástico que é.
Estes temas têm todos mais de 20, 30 anos. Nunca ponderaste escolher coisas mais recentes, que te tenham marcado nos últimos tempos? Ou isso poderá ser um segundo projecto?
SG – Poderá ser, mas para já não estou a perspectivar isso. O que eu senti realmente era que agora tinha de falar destas canções. Algumas têm um enorme lastro na minha vida, como o Volver a Los 17 (Violeta Parra), que ouvi pela primeira vez num disco do Milton Nascimento, num dueto maravilhoso com a Mercedes Sosa. Mas noutros casos interessava-me mais o autor, como os Rolling Stones, o Zeca Afonso ou o Chico Buarque. Por exemplo, no caso do Chico, o que é se canta? Há tantas canções tão boas para cantar. E, por vezes, os temas escolhidos nas crónicas não foram os mesmos dos espectáculos ao vivo.
Das 40 iniciais foram seleccionadas 20 a 25 para o concerto e depois 14 para o disco. A escolha foi uma mistura de critérios, como a representatividade das bandas / músicos seleccionados, a qualidade dos arranjos ou a eficácia ao vivo?
SG – Na transposição das crónicas para os espectáculos ao vivo, era fundamental escolher coisas com as quais me sentisse confortável a cantar. Por exemplo, não iria cantar o “What I Say”, do Ray Charles, pois seria ridículo. Depois, na escolha dos temas para o disco, houve outro crivo, ao nível da qualidade interpretativa. Houve temas que sentimos que tinham algumas imprecisões, que passam despercebidas ao vivo, mas que a pessoa ouvindo várias vezes iria dizer: “não aguento que isto esteja tão mal tocado”. Enfim, isto também sou eu a exagerar (risos). Acima de tudo, não quisemos aplicar grandes truques de estúdio.
Essa escolha acabou por ser individual ou colectiva, envolvendo também os músicos que participaram no projecto?
SG – Todos participaram, nisso e no resto. Não queríamos fazer a chamada “cover de bar”… soa bem, mas passemos à próxima. A ideia era apanhar um âmago mais radical de cada canção, mostrando que ela vive com outras respirações. E tratá-la de uma maneira muito pessoal e com poucos instrumentos.
Ou seja, reduzi-la à sua essência. E daí teres escolhido apenas um núcleo duro dos músicos que têm trabalhado contigo: o Nuno Rafael, que lidera Os Assessores, e o Hélder Gonçalves e a Manuela Azevedo, ambos dos Clã, com quem mantiveste uma forte cumplicidade musical no passado?
SG – Sim, foi a chamada redução da culinária (risos). Mas sim, até porque os três já tinham trabalhado em conjunto nos Humanos. Por vezes, pensamos em tudo o que intersectou o nosso trabalho nos últimos tempos e é fantástico. É a tal questão da harmonia das simetrias (risos; n.r.: piada privada). O Rafa tem sido um grande cúmplice no meu trabalho deste século, enquanto eu escrevi temas no passado para os Clã, como “O Sopro do Coração”, e há três letras minhas para um futuro disco deles. É uma história que cria laços, inclusivamente pessoais.
A presença da Manuela Azevedo como multi-instrumentista é particularmente surpreendente…
SG – A Manuela Azevedo brilha naturalmente, porque respira música. Ela quis entrar neste projecto como instrumentista e não como a óptima cantora que ela é. Ela toca muito bem piano, xilofones, várias percussões, flautas de bisel, ao mesmo tempo que faz segundas vozes. Dá uma cor imensa a este trio.
A propósito dessa cor e desse espírito de partilha, o Noiserv disse-me recentemente que, no arranjo feito para o “Vida Sobressalente”, sentiu uma enorme abertura da tua parte a novas soluções e sugestões. É uma prática habitual dares essa liberdade criativa aos músicos que colaboram contigo?
SG – Sim, é um processo natural quando tenho confiança na pessoa. O que não significa que depois não interfira… meto colheradas, como é evidente. Mas já liderei mais esses processos, pois, a partir de uma dada altura, comecei a tocar menos guitarra e deu-me gozo que os músicos trouxessem alguns saberes diferentes. É gente muito competente e eu gosto muito de trabalhar em equipa.
Num disco de canções alheiras, ele abre curiosamente com um tema teu, que ironicamente se chama “A Última Sessão”. Como este é um álbum de temas marcantes, significa que este é um dos compostos por ti que mais te encanta?
SG – Não necessariamente. Quer dizer, eu sempre gostei muito dessa canção, do disco Lupa, e nunca mais a tinha usado em concertos. Quando pensei no alinhamento destes espectáculos, achei sempre que devia começar simbolicamente com uma canção minha e depois apresentar esse universo às outras canções: “agora venham até aqui, que eu vou-vos cantar” (risos).
Mas tal como os outros temas são a transformação de material antigo, seria então coerente que esse tema estivesse um pouco afastado do teu universo dos últimos anos…
SG – Sim, isso é verdade, pois não é dos meus temas mais conhecidos. Talvez 90% das pessoas que conhecem as minhas músicas não se lembram deste tema e efectivamente quis resgatar essa canção.
No caso do Zeca Afonso, o tema escolhido foi sempre “Os Vampiros”. Será pela questão da actualidade, que é realçada na versão ao vivo?
SG – Sim, “Os Vampiros” tinha de estar. Por um lado, por essa actualidade que falas, “terrivelmente actual”, como eu digo. Mas também porque essa canção foi um acto inaugural absolutamente espantoso. Como digo na crónica, o Zeca abriu janelas onde nem paredes havia. É um acto de criação metafórica de uma perspicácia e uma eficácia poética extraordinárias. Neste caso, como em outros, fizemos uma versão muito diferente do original, muito rasgada, muito agreste, muito negra, com guitarras pesadas. É um momento alto do concerto, sem dúvida.
Nos temas portugueses, há escolhas bem menos prováveis, como Tony de Matos ou Frei Hermano da Câmara. É o reflexo da largura dos teus horizontes musicais?
SG – O Frei Hermano é também um poema do Pedro Homem de Mello, o “Rapaz da Camisola Verde”. Ele canta muito bem a versão original, uma canção cheia de ambiguidades, quase azulejo de época, mas com uma carga homoerótica muito interessante. Resulta muito bem ao vivo e interessou-me sempre captar o âmago de uma canção, independentemente da tralha que vem com ela. E não acho que o Tony de Matos seja tralha… eu gostava muito da forma como ele cantava, levada até ao extremo, com o elástico da corda vocal quase a partir.
E por vezes parte-se mesmo…
SG – Bom, mas ele aguentou até ao fim com quatro maços de tabaco e asmático. Mas eu quis cantar o “Vendaval” de forma diferente e há outra coisa interessante: eu leio parte da crónica na versão ao vivo, que é a origem da canção, com base num desgosto de amor do Tony de Matos. Eu gosto de mostrar que, quando uma canção é boa, aguenta várias leituras, é a essência das versões.
Nos temas brasileiros há uma alternância entre o português de Portugal e o sotaque brazuca. Como é que foi feita essa gestão?
SG – Dependeu muito dos temas. No caso do “Sampa” (Caetano Veloso) ou do “Geni e o Zepelim” (Chico Buarque), eu percebi que podia e devia cantar em português, sem quebra de expressividade. E seria interessante porque, de certo modo, distancia e aproxima do meu universo, embora no fim do “Sampa” eu aborde o brasileiro para encerrar. Por outro lado, o “Conversa de Botequim”, do Noel Rosa, tem tantos particularismos da vida de um malandro carioca que tinha que ser com sotaque brasileiro.
A propósito do “Geni e o Zepelim”, o que é curioso é que, sendo cantado em português, numa versão inevitavelmente diferente, consegue captar toda a subtileza do original…
SG – Sim, sim… só mudei uma palavra, aliás. Passou de “moleques do internato” para “catraios do internato”, para evitar esses particularismos.
Neste disco, cantas inevitavelmente temas em inglês, uma coisa raríssima na tua carreira. Causou-te algum desconforto?
SG – Há um disco meu ao vivo, que é o Rivolitz, em que cantava bastante material alheio e há um tema do Bob Dylan, o “Rainy Day Women”…
Mas era um tema apenas. Neste disco há bastante mais…
SG – Sim, mas desconfortável não é, porque o inglês e o francês são línguas que eu domino bem. Contudo, apesar da pronúncia não ter de ser perfeita, é preciso ter atenção, para não dizer as coisas muito mal. De um certo modo, a canção em que eu estive de estar mais atento foi o “Volver A Los 17”, porque sou menos fluente em espanhol, porque nunca aprendi na escola e nunca vivi em países de língua espanhola, ao invés do que sucedeu em países de língua francesa e inglesa.
Entretanto, já falámos daquelas que são as minhas três versões favoritas: a subtileza de “Geni e o Zepelim”, a catarse negra de “Os Vampiros” ou a emotividade de “Volver A Los 17”. Como responsável destas versões, consegues escolher alguns temas cujo arranjo te agrade particularmente?
SG – Realmente acho que o arranjo de ”Os Vampiros” é particularmente forte e foi o momento alto do espectáculo. Mas também considero que, com aquele assobio, o “Rapaz da Camisola Verde” tem um arranjo irresistível. Acho que o disco é um todo e é tão heterogéneo que não é fácil destacar temas. O que achei interessante no palco foi as pessoa variarem entre temas familiares e outros menos conhecidos e, como houve vários tipos de público, essa divisão não foi linear.
Para fechar, a pergunta cliché sobre o futuro. Há músicas novas de Sérgio Godinho em perspectiva ou há outros planos para breve?
SG – Para além das três letras para os Clã, não estou a escrever canções. Ando a escrever contos, que deverão sair para o ano. O meu ímpeto criativo está focado nisso.