À quarta edição o festival Semibreve continua a dar provas de crescimento, consolidando de forma definitiva o seu lugar como um oásis bem especial em pleno coração do Minho. Há muito por onde se apaixonar na cidade de Braga, desde o centro histórico milenar à gastronomia incrível, não ficando difícil compreender o atractivo que o festival representa para um grande número de visitantes do outro lado da fronteira e centro da Europa. Aliem o supracitado a um cartaz escolhido a dedo, dimensionado a uma escala acessível e longe de extenuante, ancorem-no a um belíssimo Theatro Circo e mais recentemente a um revigorante GNRation e terão encontrado grande parte das simples razões que fazem com que ano após ano o Semibreve transforme Braga na capital portuguesa da electrónica e artes digitais.

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Roedelius tem já 81 anos e tentar enumerar pontos da sua carreira conseguiria ter tanto de injusto como de cansativo. Digamos apenas que foi parte da fundação dos incontornáveis Cluster e Harmonia, tendo pelo meio colaborado mais do que uma vez com um outro senhor de seu nome Brian Eno. Nada de mais, portanto. Apresentando-se aqui para um concerto muito especial e conjunto com quatro artistas portugueses, Roedelius entrou no palco do Teathro Circo de forma claudicante, acenando e esboçando um sorriso gentil e procedendo a colocar uma rosa vermelha em pleno coração do palco – “uma flor para a beleza da gente de Braga” – disse-nos. Curvado sobre o piano de cauda, foi do génio de Beethoven que saíram as primeiras notas tocadas pelo alemão, uma melodia que não tardou a esfumar-se pela manipulação e a ser sobreposta por tantas outras de forma sucessiva. Por entre as notas daquele piano iam surgindo field recordings e um universo inteiro de sons que se pareciam afundar e emergir uns dos outros. Uma actuação partida em dinâmicas e em espectros de cores; o Semibreve tinha acabado de começar de forma imaculada.

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Roedelius

Os Dopplereffekt representam um daqueles estranhos duos que ninguém parece compreender ao certo. No activo desde 1995 e nascidos pela mão de Gerald Donald em plena cena techno de Detroit, a agora dupla arrasta para o palco uma nuvem de maquinaria industrial desleixada, quase robótica e de carácter rítmico bem presente. A postura da dupla em palco não é menos desleixada e dada à inércia do que a música que pratica, e à terceira vez que vimos repetido um loop quase explicativo da engenharia do Large Hadron Collider, foi impossível não pensar que se arrastaram uns bons vinte minutos a mais.

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Dopplereffekt

A adição em 2014 de um espaço como o GNRation à natureza do Semibreve veio preencher uma lacuna que vinha a ser palpável em edições anteriores do festival. O espaço inaugurado há coisa de somente dois anos faz já parte integrante da oferta cultural a norte do Douro, tendo-se apresentado aqui como um espaço mais casual, em que se dançou na vertical e em que tudo se arrastou até um bocadinho mais tarde.

Foi precisamente neste palco e pelas duas da madrugada de sexta-feira que nos deparamos com a magia de Luke Abbott. A música de Abbott move-se por uma auto-estrada serpenteante de melodias mais ou menos ruidosas, perdendo-se da forma mais bela em ritmos hipnotizantes, tendo tanto de dançável quanto de algo que nos faz querer baixar a cabeça e colar os olhos aos pés. Houve espaço para “Brazil” e “Whitebox” de Holkham Drones e ainda à sublime faixa título de Modern Driveway, tempo para arpégios desenfreados unidos por segmentos de experimentalismo em forma de sinal analógico. Para quem subiu ao palco dirigindo-se à plateia com uma declaração de ligeirinha embriaguez, pode-se muito bem dizer que o malte português o estava a tratar como deve ser. Não sabemos nada sobre Marte, mas pelo menos no sintetizador modular do britânico tem certamente de haver vida.

A manhã de sábado arrancou com a notícia do cancelamento de Tim Hecker. A ausência do artista canadiano representou logicamente um golpe ao cartaz que viu assim perdido um dos nomes incontornáveis do seu alinhamento, obrigando ainda a um reajustar de horários do segundo dia de SemibreveKlara Lewis passou do Pequeno Auditório para a Sala Principal, tendo Die Von Brau ocupado o lugar da jovem sueca na mais pequena das salas do festival, situada nos pisos inferiores do Theatro Circo.

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Klara Lewis

Klara Lewis

Klara Lewis chegou só bem recentemente à casa dos vinte anos e com Ett lançado ainda ao ano passado pela austríaca Editions Mego (label fundada por Peter Rehberg e que arrasta no seu catálogo nomes como o de Stephen O’Malley, Mika Vainio e Oneohtrix Point Never), a artista sueca é um dos nomes para que olhamos com curiosidade nos tempos que estão para vir. Ao vivo a sua música move-se de forma orgânica e umbrosa, em que a presença de ritmos não surge sobreposta à natureza textural e ruidosa que lhe serve de base. Pena apenas ter-nos parecido algo perdida a espaços, mas no geral aguentou-se bem perante uma sala tão grande. De seguida e na slot que pertencia anteriormente a Tim Hecker seguiu-se Vessel, alias do britânico Sebastian Gainsborough e que rapidamente mostrou intenções de querer agarrar uma plateia inteira pelo pescoço. De lanterna presa entre os dentes o tempo inteiro, ombreado por uma incrível colaboração visual com Pedro Maia e atirando a camisola ao chão em poucos minutos, Vessel moveu-se em territórios bem próximos da industrial e da techno mais abrasiva. Sincronizadas com movimentos cervicais de carácter quase espástico, as erupções noise estavam um pouco por toda a parte e somos bem capazes de ter querido imitá-lo em momentos. Uma boa surpresa já que o trabalho de Gainsborough em disco está longe de nos convencer; ao vivo foi do mais intenso que se viu em três dias de Semibreve.vessel

Vessel

Vessel

Com padrões rítmicos hipnotizantes e verdadeiramente indutores de alucinações, coube a Mannerfelt, metade dos suecos Roll The Dice, trazer a psicadelia a Braga na madrugada de sábado. De peruca loira do avesso e deixada cair que nem cascata pela cara abaixo, Mannerfelt chegou a disparar beats duma fúria e velocidade quase punk, deixando-nos sem saber se abanar a anca ou vidrar os olhos nos visuais tons rosa que se iam abatendo atrás dele. Na impossibilidade duma tela maior, o que faltou a uma “Lines Describing Circles” foi mesmo não podermos ter enfiado o crânio dentro do PA.

Peder Mannerfelt

Peder Mannerfelt

Não existem muitos artistas com um currículo como o de Oren Ambarchi. Dos Sunn O))) a Gravetemple a colaborações com Jim O’Rourke, Keiji Haino e Fennesz, o australiano já terá corrido meio mundo e outro meio mundo já o terá visto a ele mudar de pele. Em palco de guitarra no colo e ladeado por dois amplificadores (ouvir um Leslie continua a ser tão bom quanto da primeira vez), Ambarchi consegue com que tudo o que faz pareça tão simples. A hipnotizante construção faz-se por camadas e camadas de texturas, lampejos noise não menos melodiosos e por ritmos minimalistas que iam calhando que nem sincronizados a relógio atómico nos espaços mais despidos. Uma luz amarela solitária caía sobre Ambarchi e a parafernália analógica que trazia com ele; enquanto isso o que nos pareceu uma borboleta ia traçando círculos perdida em torno do foco, projectando sombras à assustadora lição em dinâmicas que o homem metro e meio abaixo ia desenrolando. Domingo viu em Ambarchi um génio como há poucos.

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Oren Ambarchi

Se a performance de Ambarchi representou o pináculo dum fim de semana de concertos, a colaboração entre Takami Nakamoto e Sebastien Benoits foi o seu vale mais fundo. A coisa divide-se entre a EDM azeiteira e quasi-foleira e um ou outro momento em que se percebe que ambos vêm a partilhar palcos nos Doyle Airence (quintento de metalcore francês e igualmente lastimoso). Se nos primeiros trinta segundos de concerto o aspecto visual intenso e forte em luz estroboscópica até conseguiu impressionar, a plateia parecia perdida ao final da segunda música. Houve quem no final ainda aplaudisse de pé, mas imaginem um misto entre uns Pendulum e as poses calculadas duns Bring Me The Horizon e tentem passar um bom bocado. Exemplo perfeito de que os visuais estão longe de valer tudo, ou de que valem quase nada quando o que se ouve não presta; fiquem-se pelas instalações.

Takami Nakamoto & Sebastien Benoits

Takami Nakamoto & Sebastien Benoits

O cancelamento de um nome como o de Tim Hecker acabou irremediavelmente por trazer um travo agridoce ao que poderia ter sido quase perfeito, a verdade é que existem festivais que carregam em si um peso especial, um carisma incomparável que os distancia e afasta de comparações com análogos e em que nos queremos perder e apaixonar vezes sem conta. O outro falaria em mística e se calhar é mesmo disso que se trata. Não interessa que sejam já repetentes ou que tenham aqui o primeiro contacto com o mundo das artes digitais e da electrónica experimental; o Semibreve é um desses festivais, um evento que se aponta no calendário mal que a edição anterior termina.