No mundo da electrónica vanguardista todas as explorações sonoras são válidas e, sendo o Semibreve um festival dedicado a essas sonoridades, durante três noites, as convenções musicais ficaram à porta das salas de espectáculo onde este se desenrolou. Convém lançar o aviso: este festival não é para duros de ouvido, mas para quem tiver alguma abertura de espírito, é uma experiência única que vale a pena vivenciar. E depois, claro, para os aficionados do género, o Semibreve é como um oásis num enorme deserto de festivais pop/rock.
4 de Outubro @ CCVF, Guimarães
De todos os nomes do cartaz, Pole era um dos mais acessíveis e certamente que não foi coincidência que este tenha sido o primeiro a subir ao palco. As batidas fortes e fluídas do alemão funcionaram como pórtico de passagem e facilitaram a entrada dos mais incautos neste novo mundo – um mundo sem refrões ou canções propriamente ditas onde, não raras vezes, conta tanto ou mais o processo criativo do que o resultado final. Apesar de indiscutivelmente electrónica, a actuação de Pole revelou-se bastante orgânica. Os estalidos e ruído de fundo davam textura às suas batidas fortes (mas não agressivas) e mesmo as paisagens verdejantes dos visuais de p.ma – um pouco desinspirados, diga-se – pareciam coerentes com essa ideia.
Já Vladislav Delay – o maior nome da primeira noite – viria a mostrar-se muito mais matemático na sua arte. Feita de padrões complexos e fragmentados, é mais difícil penetrar na música do nórdico do que na do seu antecessor, mas é também mais recompensador quando se identifica uma linha condutora e se consegue acompanha-la nos momentos mais intensos. A parceria de longo tempo com AGF permitiu que a música de Delay se ligasse às malhas digitais de Antye Greie e que estas se multiplicassem na tela em sincronia produzindo formas e texturas irregulares tanto a nível visual como sonoro.
Para o fim, e só para quem tinha o passe geral, estava reservada actuação intensa de Grischa Lichtenberger. A força das suas batidas, a par da sua projecção (uma espécie de código de barras epiléptico) funcionaram como uma espécie de after-hours no qual, curiosamente, ninguém dançou ou se abanou de forma estranha. No Café Concerto do C.C. Vila Flor, a música foi celebrada de forma mais racional e contida do que seria de esperar para as batidas potentes que eram debitadas do computador deste (outro) alemão. É realmente uma realidade diferente a do Semibreve.
5 de Outubro @ Theatro Circo, Bragas
Na segunda noite de Semibreve, o festival regressou à terra que o viu nascer – Braga – e, depois de transposto o limiar em Guimarães, estava na altura de mergulhar mais fundo neste mundo. Roly Porter e Flicker foram os primeiros a subir ao magistral palco do Theatro Circo e proporcionaram uma das melhores e mais surpreendentes performances do festival. A música ambiental e sinistra de Porter (banda sonora perfeita para um filme de terror/suspensa) foi o complemento ideal para as projecções deFlicker que, de tão boas, roubaram o protagonismo ao seu acompanhamento sonoro. De uma forma completamente genial, Flicker recorria a uma série de câmaras, mecanismos e objectos para fazer a captação das imagens em tempo real e manipula-las logo ali – a maior prova de que o Semibreve não é ‘só música’.
A estrear o auditório secundário do Theatro Circo estiveram os emptyset cujo set foi a causa de muita turbulência graças à intensidade da sua música. A sala secundária do Theatro Circo já de si é pequena, mas a forma como a dupla britânica a bombardeou de batidas e vibrações fortes e, desta vez sim, agressivas tornou o ambiente ainda mais claustrofóbico. A parte visual do espectáculo ficou a cargo de Joanie Lemercier – o director artístico do colectivo AntiVJs -, mas, embora estivessem perfeitamente sincronizados com os decibéis dos emptyset, depois da actuação impressionante de Flicker a sua abordagem 100% digital acabou por saber a pouco.
De volta à sala principal, era hora de receber o nome mais esperado da noite – os Mouse on Mars um dos maiores e mais antigos grupos electrónicos dos nossos tempos. Em constante reinvenção, o set da dupla germânica centrou-se no seu último álbum (Parastophics) e em temas inéditos que poderemos ouvir num novo disco que sairá ainda este ano. O som dos Mouse on Mars está carregado de influências dos mais variados quadrantes musicais e, pela primeira (e única) vez nesta edição do Semibreve ouviram-se ‘canções’ com direito aplausos entre temas e até, pasme-se, um encore. Foi um set enérgico e cheio de ritmos frenéticos que dispensava perfeitamente as cadeiras a troco de maior liberdade de movimentos a que muitos se atreveriam de chamar dança.
6 de Outubro @ Theatro Circo, Braga
Se consideramos a primeira noite como o portal de acesso a este admirável mundo novo, então a segunda foi seguramente o corredor de ligação para o ponto alto do evento. A última noite de Semibreve foi então o culminar deste mundo digital de explorações sonoras e, por isso mesmo, foi a mais ‘difícil’ de todas. Era fácil distinguir o pessoal que está dentro desta cena musical dos ‘turistas’ que ali estavam apenas por curiosidade. Se os primeiros se mostravam extasiados com as actuações dos colossos Ryoji Ikeda e Ben Frost, o segundo grupo estava perdido sem saber o que pensar do que havia acabado de presenciar. “Só para duros.” dizia alguém com conhecimento de causa no foyer do Theatro Circo.
A primeira actuação da noite veio do extremo oriente na forma de matrizes binárias. Os 0s e 1s que Ryoji Ikeda debitou do seu computador e as suas projecções intensas e impróprias para epilépticos sideraram o Theatro Circo e deixaram marcas potencialmente irreversíveis na psique de quem lá esteve. No final do set, depois de todos os blips, glitches e estática, o japonês fechou simplesmente a tampa do seu portátil e abandonou o palco sem aguardar pelos aplausos (que não se fizeram esperar) com uma clara atitude de missão cumprida. Não havia mais nada a dizer.
Na última noite de festival, a proposta do Semibreve para a sala secundária foi Most People Have Been Trained to be Bored – uma aposta que encaixa mais no espectro da música contemporânea e experimental do que propriamente electrónica, mas que, ainda assim, se sente bem em casa neste evento. Com uma abordagem muito física, Gustavo Costa utilizou a panóplia de objectos e instrumentos de percussão que o rodeavam para pontuar e estilizar os sons pré-gravados que se ouvia de fundo. Com a ingrata tarefa de actuar entre dois dos maiores nomes do festival, a performance de Most People Have Been Trained to be Bored foi estimulante e desconcertante para quem se deixou envolver pela sua ambiência.
Foi com um ‘baque’ seco e potente, que Ben Frost colocou o derradeiro ponto final nesta edição do Semibreve. Dizem os entendidos que não podia ter terminado de melhor forma. Depois de colocar a sala a vibrar à mesma frequência da sua música, depois da experimentação electrónica e de alguns violentos rasgos de guitarra serem despejados sem piedade e de uns melancólicos toques de piano embalarem a plateia, foi um silêncio quase ensurdecedor que encheu a sala principal do Theatro Circo. Durante alguns segundos a plateia tentava perceber se o concerto teria realmente chegado ao fim, mas a maior vaga de aplausos do evento não tardou em fazer-se sentir. Foi debaixo de uma chuva de aplausos de pé que Ben Frost abandonou o palco e se despediu do Semibreve e foi com esses aplausos efusivos que o festival se despediu do seu público. Para o ano há mais, ou pelo menos assim se espera a julgar pelo sucesso desta edição.