Só deus saberá o que vai na alma e mente inquieta(s) de Sei Miguel, mas o que quer que seja deu azo à criação de uma das peças mais espiritualmente desconfortáveis que o Maria Matos terá ouvido. Prelúdio e Cruz de Sala.
Que nome tão enigmático este, que alusão tão espiritual e ritualista, revestido de noções vagamente religiosas. Felizmente, não vêm ao acaso. Pelo menos, se tivermos em conta a densidade com que o TMM ficou revestido ao apagar das luzes e ao ouvir o tom de partida dado pela percussão de César Burago. O tom para que o trombone de Fala Mariam, a guitarra de Pedro Gomes e o eterno trompete de Sei Miguel abraçassem connosco uma incómoda liturgia. Incómoda, sim. Não pela forma de tocar (intensamente melódica e por vezes bela,), mas pela maneira como nos toca e envolve.
Ali, numa falsa escuridão banhada a vermelho sanguinário, deslindamos facilmente a pose em transe de Sei. Fala Mariam, Pedro Gomes e César Burago, em contraste, parecem impassíveis na reverberação dos seus instrumentos, essenciais para a atmosfera manter um tom perturbador que, a ser material, exerceria no homem algo próximo da curiosidade mórbida. Mentalmente divididas em duas partes, mas vividas como se de uma se tratassem – bom, pelo menos por quem se sentava defronte do palco – as peças eram mal iluminadas por um cenário perfeito para a deambulação entre o drone e a melodia, onde parecia preconizar-se uma orquestra encontrada, mas ainda em afinação.
Com o vermelho sangue, a calma sombria e quase maléfica aspirava ao transe ébrio, próprio de um ritual sacrifical. Ritual que, como se esperava, levou o seu tempo a ser concretizado, mas foi beneficiado pelo compasso reflectido e pela lenta percussão tribalista – a principal responsável por se passar de uma reza introspectiva para o avivar de (pre)tensões ritualistas que, acima de tudo, se notavam na pose e presença introspectiva dos músicos. A guitarra de Pedro Gomes – hoje muito mais pertinente que na noite em que se apresentou na ZDB com Gabriel Ferrandini – assumia um papel preponderante. Como uma batuta tibuteante entre o suspense e a hesitação, ambos acicatados pelo trompete abafado de Sei e avolumados pelo trombone de Mariam.
Quem quisesse, não precisava de mais que o conforto dos assentos onde estava para partir numa espécie de procissão, num passo a passo oratório e demorado, paciente. A bonança parecia inevitável, ainda que desconfortavelmente aceite e instalada no seio de quem, como eu salivava por cicuta, por uma tromba de água que agitasse a debilidade, que desse corpo à ansiedade por uma quebra numa viagem profunda pela psique de um quarteto que entretanto invadira corpo e mente de quem ali estava.
E, graças a um qualquer transe, ansiedade, químicos, reza ou ritual de qualquer espécie ela chegou. Chegou ruidosa, em ondas, em verdadeiras pontadas de distorção enferrujada que, vindas da guitarra de Pedro Gomes e, sem nada podermos fazer para o evitar, acirraram violentamente os nossos tímpanos, quebraram (em uníssono com os sopros) a dormência física – mas não psicológica – e atiraram-nos de volta à realidade.
A liturgia pouco tradicional de que Sei Miguel falara no início da noite fora cumprida, falhando apenas na comunhão. Como qualquer local de prece em 2012, o Maria Matos vazio foi frio e pouco receptivo, mas confortável para que a materialização de uma cruz ao ombro se fizesse sentir a cada fechar de olhos.