Há pessoas assim. Enquanto Scott Kelly actuava, recordava-me de David Eugene Edwards, líder dos Wovenhand, que tinha estado no Santiago Alquimista há três meses atrás. Edwards trouxe consigo uma banda, mas, se tivesse optado por vir sozinho, o concerto não perderia nem qualidade nem intensidade, certamente. Quando falamos de Edwards ou Scott Kelly, falamos de figuras que transportam consigo toda uma violenta carga emocional, capaz de preencher os espaços desguarnecidos de qualquer palco, por maior que ele seja.
Ontem, Scott Kelly, apenas fazendo uso de uma guitarra acústica, conseguiu produzir uma rara sinergia, somente ao alcance daqueles que já atingiram a plenitude artística. Se há uma ligação oculta entre a profunda espiritualidade e a edificação de uma obra musical, Scott Kelly detém a chave-mestra dessa simbiose.
“É estranho eu estar aqui com uma guitarra acústica. Mais estranho ainda é vocês quererem ver-me a tocá-la.” Não, não é assim tão estranho. Poder-se-á dizer que o que foi mais estranho foi o facto de estar tão pouca gente no Alquimista. Mas, nada importunado com isso, o americano foi desenlaçando os seus dois álbuns, com especial atenção para The Wake (2008). Tocando a acústica com aquele mesmo ímpeto que lhe é reconhecido quando faz uso da eléctrica, Scott Kelly torna-se profeta com voz de trovão. E o silêncio logo impera religiosamente na sala até ao último vestígio do último acorde, algo que agrada ao músico, que já tinha ficado muito satisfeito com a atitude do público portuense. “Vocês são tão diferentes da maioria dos locais onde eu toco”, elogiou Kelly, para contentamento geral. Por esta altura, já alguns tinham decidido sentar-se na madeira do Santiago Alquimista, para melhor contemplar a taciturna suavidade musical que do palco provinha. Por momentos, parecíamos estar incluídos numa pintura onde um velho sábio conta as histórias da sua vida aos que se congregam em seu redor.
A chuva, que se abateu ruidosamente sobre o telhado a meio do concerto, tornou o ambiente ainda mais solene. “Está a chover? Ainda bem, assim parece que tenho um teclista”, gracejou o membro dos Neurosis, que, por esta altura, tocava Catholic Blood, uma das mais belas faixas da sua carreira a solo, aproximando-se de um fim que nos trouxe também duas covers: Tecumseh Valley de Townes Van Zandt e Lord of Light dos Hawkwind, faixa que colocou um ponto final na actuação de noventa minutos do americano. Houve quem lhe pedisse para tocar músicas dos Neurosis, e houve, até, quem cantasse algumas letras da banda. Scott Kelly disse que era impossível. Mas acrescentou: “Vocês abriram-me definitivamente os olhos para Portugal. É um sítio fantástico. Farei o meu melhor para trazer aqui… Os meus amigos. Menos o Steve Von Till (risos). Mais tarde ou mais cedo, iremos reencontrar-nos. Até lá.”
Os espanhóis Orthodox foram os escolhidos para algumas datas ibéricas da digressão de Scott Kelly. Lisboa não foi excepção e a cidade também recebeu uma banda que, apesar de ser bastante catalogada dentro da variante drone, se apresentou com traços bem mais funeral jazz do que poderia ser, a princípio, expectável. Para isso, fez uso de um clarinete e de um saxofone, bem como de um contrabaixo, aliados a instrumentos mais ortodoxos como bateria e guitarra. Sem atingir grandes momentos, a actuação dos sevilhanos funcionou de forma eficaz, preparando bem o terreno para o que viria a seguir. O melhor do concerto terá ficado para o fim, quando o contrabaixista decidiu emprestar a sua voz à derradeira faixa, que, curiosamente, não contou com a presença do homem encarregue dos sopros, mas que independentemente disso ganhou na boa atmosfera criada.