Por entre a maralha de tatuagens encardidas pelo tempo, lá está na pele de Dave Chandler o logotipo dos Black Flag. Ele, encafuado entre tantas outras figuras, confidencia-nos o paradoxo onde os Saint Vitus sempre residiram – era esta a banda que em 1985, nas primeiras partes dos BF, recebia do público o nobre epíteto de “hippies de merda”. O submundo do punk, na ânsia do “Nervous Breakdown” imediato, jamais percebeu que os Saint Vitus, na sua ostensiva alienação e desprezo pelo amanhã, lhes comunicava uma mensagem homogénea à de uns Negative Approach ou à de Henry Rollins bramida em “Nothing Left Inside”. Sem a compreensão desse nicho – o mesmo que também não quis entender a razão dos Black Flag terem deixado repentinamente crescer a guedelha -, os Vitus auto-determinaram-se no isolamento. Não havia, naqueles 80s norte-americanos, espaço para as songs much too slow.

“Born Too Late” é por isso um lento convénio sobre a solidão e o que de mais rasteiro ela traz: abuso de substâncias, noites perdidas em bordeis, uma velhice repentina que lhes roubou prematuramente a esperança. E o paradoxo permanece em moldes distintos – os excluídos Saint Vitus, quase três décadas após esse fundamental LP, celebram nestes anos uma consagração que se julgaria impossível. Wino di-lo ainda melhor numa singular entrevista dada a um puto do primeiro ciclo: a banda sobreviveu ao teste do tempo como um dinossauro fossilizado.

A sumular prova de que, ao longo dos anos, foram encontrando as franjas herméticas de quem cultua o ritmo arrastado, fez-se num RCA cheíssimo. Quem diria? Responderam os Saint Vitus com a veemência dos grandes, num exercício ao vivo que superou o mero resgate enferrujado de tempos idos; seja naquele grave tom de guitarra, seja nos intensos esgares de ChandlerWino, podemos afirmar sem tretas que vimos em Outubro de 2014 uma representação fiel daquilo que mais respeitamos nestes eternos falhados. “I Bleed Black”, solene e crente que o PA resistiria aos decibéis, roubou-nos um arrepio; “White Stallion”, sacada com mestria à era do Scott Reagers, foi rock. Rock. Sem mais.

Mas o RCA estava à pinha pelo “disco rosa” – Chandler dixit. A desolação miserável desse “Born Too Late” se em álbum já é o que é, estampada nas colunas tremelicantes daquela cave lisboeta tornou-se intimidatória. Como reagir aos acordes de “Dying Inside”, dedicada a todos esses alcoólicos prostrados (com Wino a distribuir cervejas pela primeira fila), sem um sorriso de satisfação? Não houve ponta de anacronismo, de sabor a requentado; aquela solidez maciça dos Vitus esteve ali sem que lhe encontrássemos fraquezas. E foi no groove de “Clear Windowpane”, ode às viagens nas coloridas cabines do LSD, que percebemos a magnitude de Henry Vasquez – o baterista que substituiu o falecido Armando Acosta não é somente eficaz; é uma besta a tratar o drumkit.

De “Born Too Late”, a música, valerá a pena sequer falar? Sobra-nos a memória de um uníssono sílaba a sílaba. Hino do desajuste e salmo de uma forçada independência individual berrado por quem preencheu plateia e balcões. A tal celebração contraditória – o exílio festejado em comunhão. Tão exultado que obrigou os norte-americanos a renegarem o backstage; voltaram para umencore com “Saint Vitus”, o anteâmbulo de uma história que tem tanto de bonita quanto de atormentada.

Os Orange Goblin, de outras latitudes, baloiçaram o seu rock (cada vez mais) festivaleiro. Há algo ali que nos desperta a vontade de lhes chamar “Metallica do stoner” – seja pela atitude meio postiça, seja por estarem cada vez mais distanciados da acidez que fazia da “Song Of The Purple Mushroom Fish” um soberbo exemplo de psicadelismo. Tornam-se, a cada disco que passa (e mais um acabou de sair), uma banda entre tantas outras. Logo eles, que costumavam morar no décimo planeta do sistema solar e agora ressoam entretidamente banais.