Poucos nomes no nosso país estarão tão relacionados com o jazz, e de forma tão íntima, como o de Rui Neves, que faz da divulgação deste género em Portugal a sua missão desde a década de 70. Conversámos com ele a propósito do 30º aniversário do Jazz em Agosto, não esquecendo ainda o Jazz im Goethe-Garten, que decorre actualmente nos jardins do Instituto Goethe e terá os dois últimos concertos desta edição hoje, dia 16, e quinta-feira, dia 18,na ambos às 19h.
O Jazz em Agosto (JeA) é dos mais antigos festivais dedicados a esse género em Portugal. Pode falar-nos um pouco da sua história?
Nasceu em 1984 pela mão de Madalena Perdigão, que quis que o festival fosse uma montra da contemporaneidade do jazz e onde a qualidade prevalecesse sem imperativos comerciais. Depois de uma edição “zero” em 1984 com quatro grupos portugueses relevantes na altura – Maria João Quinteto, Pinho Vargas Quarteto, Sexteto de Jazz de Lisboa e o Grupo Xis – a 2ª edição, onde comecei, tinha mais ambição, apresentando-se a Sun Ra Arkestra, Terje Rypdal, Dave Holland Quintet e os portugueses José Eduardo com o seu grupo Onix e António Pinho Vargas estreando o seu novo Sexteto. Para melhor se entender o impacto do JeA na época, o evento foi uma aposta que resultou pois não existia qualquer actividade cultural em Lisboa em pleno Verão. A partir de 1995 a tarefa de programar o JeA foi conferida ao Hot Clube de Portugal que até 1999, embora com pendor mainstream não deixou de marcar o panorama lisboeta com grandes figuras como Max Roach ou Dave Douglas, incidindo na realidade portuguesa emergente e na actividade formativa. O desaparecimento do serviço Acarte a partir de 2000 levou o JeA a ser integrado no Centro de Arte Moderna com a direcção de Jorge Molder. Em 2013 o JeA continua a dar a conhecer músicos criativos de uma expressão que não cessa de evoluir tal como a vida mas com a grande diferença de não ter morte à vista porque alimentado por sucessivas gerações que o vão moldando.
Sente que o jazz em Portugal tem tido uma importância crescente?
É um fenómeno global ao ponto de muitas outras músicas se apropriarem da designação para caracterizar o que fazem e que pouco ou nada têm a ver com o jazz. Portugal tem beneficiado, de facto, da mensagem que chegou ao nosso país em 1971, o 1º Cascais Jazz, o 1º festival de jazz em Portugal. Até hoje, por força de múltiplos concertos, dos programas de jazz na rádio e na televisão, do reflexo na imprensa e pela democratização da net, muito público português adquiriu gosto pelo jazz, e embora domine o mais comercial, há também público alternativo que cultiva o jazz criativo e novo. Em consonância, surgiu há duas décadas uma nova geração de músicos que pensa em profissionalizar-se em novas escolas que os esperam com os professores atentos e que também são músicos.
Ainda subsiste um pouco a ideia de que o jazz é um género elitista, que apela mais à classe média alta.
Sejamos claros: vivemos numa sociedade de classes e o jazz é uma música urbana, não é de todo rural nem da classe operária. Será elitista no melhor sentido de exigência, da inovação, da criatividade, ao contrário da facilidade, da apreensão imediata como a maior parte da música pop de massas. Ora como a instrução e a cultura se encontram mais disseminadas nas classes altas, as coisas são como são: as pessoas, no fundo, é que têm que descobrir e sentir a Arte por elas próprias independentemente da sua classe social.
A internet modificou totalmente a indústria discográfica. Terá permitido também uma maior abertura ao experimentalismo musical?
É evidente que o papel da net na indústria musical criou novas situações, aparentemente lesivas para uns e benéficas para outros. O download passou realmente a imperar, ou ouvir discos inteiros no Spotify por preços acessíveis, embora este aspecto diga mais respeito à música comercial sob a forma de canção. Mas também se criou o conceito do download selectivo a partir de sites de músicos criativos, de blogues, do YouTube, da imensidade depodcasts, dos concertos em streaming. Eu próprio utilizo o modopodcast desde 2005 (Músicas no Plural), pela fiabilidade técnica, liberdade e alcance global. A net tornou-se também numa base de dados extraordinária na homologação de formas musicais menos conhecidas e mais criativas, o que veio também estimular grandemente a realização dos concertos das músicas alternativas, improvisadas, experimentais.
Há pouco interesse em investir em áreas que não apresentam retornos imediatos. Como tem sobrevivido a Gulbenkian e o Jazz em Agosto?
A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição privada com meios autónomos de financiamento e que não depende do dinheiro público que alimenta outras instituições em Portugal. Os orçamentos que a FCG dedica às suas actividades primordiais — Arte, Ciência, Desenvolvimento Social — é algo que está consignado nos seus objectivos desde que foi fundada, mantendo-se até hoje, a sua razão de ser. Antes do 25 de Abril dizia-se que a FCG era o verdadeiro Ministério da Cultura de Portugal e, agora, parece que se volta a dizê-lo, sobretudo quando se assiste à despromoção da Cultura por governantes tecnocratas para os quais o cidadão é pouco mais do que um NIF.
Em 2005 surgiu o Jazz im Goethe-Garten, do qual também é curador. Para além de esse se dedicar ao jazz europeu, como o diferencia do Jazz em Agosto?
Enquanto o JeA dispõe de um maior orçamento que permite pensar precisamente maior, convidando os mais importantes músicos, historiando o jazz contemporâneo, o Jazz im Goethe-Garten assume uma menor dimensão mas com idênticos critérios de qualidade abrangendo a realidade europeia. O foco do JiGG é o novo jazz da Europa que existe em países cuja actividade é desconhecida para a maioria do público português, apresentando-se maioritariamente grupos da nova geração, em princípio de carreira, mas também figuras veteranas associadas à nova geração, em projectos que se estreiam em Portugal.
Nas últimas edições, o Jazz em Agosto teve um “mote”. Diria que o mote deste ano é o regresso de alguns grandes nomes?
Tornou-se natural que as programações do JeA tenham reflectido vários e determinados conceitos acompanhando os tempos em que a música foi evoluindo. Em 2013, na 30ª edição, celebrando-se a identidade do festival, seria lógico chamar alguns dos mais importantes músicos que fizeram parte das suas programações, contudo em novos projectos que nunca se apresentaram em Portugal. A reclamação de identidade do Jazz em Agosto também se consubstancia num livro a editar-se em breve,Chegadas/Partidas: Novos Horizontes no Jazz reunindo ensaios biográficos de 50 músicos que actuaram no JeA.
Este ano o festival começa ainda em Julho, com o novo projecto da cantora Maria João.
Há uma forte razão: o facto do Quinteto original da cantora ter sido o 1º concerto do Jazz em Agosto, em 1 de Agosto de 1984. Mas também existe outra razão: o Centro de Arte Moderna da FCG celebrar o 30º aniversário precisamente em 25 de Julho. E foi no CAM da FCG onde nasceu o JeA. Assim, entendeu-se convidarMaria João no seu projecto mais recente, OGRE, que embora associado ao Jazz em Agosto 2013, será um concerto de preâmbulo a 25 Julho, com entrada livre.
Há ainda uma coincidência perfeita: este 30º aniversário da Gulbenkian acompanha o 60º de John Zorn, cuja actuação na Gulbenkian terá um momento único em toda a tour.
Na verdade a ocasião foi cuidadosamente escolhida. Zorn já assinalara [numa série de concertos] os seus 50 anos, assinalando agora os 60. Atempadamente se planificou uma digressão europeia e americana em festivais “amigos” específicos de um pacote dos seus projectos correntes. No caso do JeA preferiu-se a fórmula mais sucinta de três concertos, um por dia, com dois grupos emblemáticos, The Dreamers e Electric Masada e um outro que será único, o projecto Essential Cinema, versando a música que compôs para filmes alternativos e que está consignada na série FilmWorks da sua label Tzadik.
Como o Jazz em Agosto não é só música ao vivo, o que nos pode dizer acerca das sessões de cinema?
O amador de jazz costuma ser cinéfilo, ou, talvez, isso seja mais apanágio de uma geração como a minha, a de baby boomer, quando o cinema era procurado também pelo seu lado político e social. O facto de filmes documentais fazerem parte das programações do JeA nos últimos anos deve-se sobretudo à proliferação na área, pela tecnologia surgida ou pelo aproveitamento de arquivos que entretanto foram digitalizados. Este ano a oferta é farta e interessante: a cena de John Zorn em quatro filmes que ele produziu e que se estreou no New York Film festival 2011, John Zorn’s Treatment for a Film in Fifteen Scenes, a série de televisão aTensãoJAZZ em dez episódios (uma história do jazz em Portugal desde os seus primórdios à actualidade, com o meu guião e a realização de Paulo Seabra) e ainda dois registos históricos do arquivo da RTP de concertos no JeA 1985, Sun Ra Arkestra e no JeA 1987, World Saxophone Quartet, dois faróis do jazz contemporâneo.
Para terminar: a nível do jazz, tem fama de ser uma autêntica enciclopédia musical. O verão é um período atarefado, mas quais os discos que tem ouvido com mais regularidade?
O conhecimento adquire-se, não há segredos, no meu caso que trabalho profissionalmente em várias frentes da Música há quatro décadas, tudo é natural. Quando me pedem o que ando a ouvir é sempre embaraçoso pois oiço vários tipos de música todos os dias em concerto e em disco. Na última semana estive em três concertos, quem me ouvir semanalmente no podcast Músicas no Plural fica a saber a que música me dedico. Oiço sempre discos diferentes, fixo-os à primeira audição, eis porque fazer uma lista para mim não faz sentido.