Fazer uma crítica a um festival como o Roadburn é, à partida, um papel ingrato. Não há crítica num festival em que a banda menos boa, num contexto normal, daria, no mínimo, um bom concerto. Não há crítica quando se têm de tomar opções tão feias quanto verSleep, ou ver Tombs, sabendo que ambos os concertos seriam memoráveis e imperdíveis. No Roadburn, mais do que noutro festival qualquer, é justo dizer-se que se viu um concerto quando se viu apenas uma música – às vezes é arriscar perder esse grande concerto para se ver um ainda melhor. É uma correria estratégica, que tem de ser planeada e vivida da melhor maneira. Ao fim do primeiro dia, já se vivia com o peso de tomar estas decisões e já se compreendia a necessidade de abdicar de concertos inteiros. Depois da primeira vez, o mundo da música revela-se realmente aborrecido. Passar por um festival em que estão reunidas todas as condições para o memorável e em que bandas tão importantes como OM e Yob são colocadas no pedestal que merecem, perante um público que as tem como queridas, faz com que o festival holandês esteja envolto numa atmosfera tão especial quanto única – e o que os concertos lá vistos ganhem essas mesmas características, fazendo com que uma apresentação neste contexto possa ser sempre melhor do que em nome próprio. Se o Roadburn fizesse sentido, este primeiro parágrafo seria, de resto, totalmente dispensável.

Dia 1

Aquele arrepiozinho de felicidade surgiu perante a figura de  . Não só por ele, mas por todo o quadro onde o guitarrista dos Swans se inseriu: três horas da tarde, piso inferior da Het Patronaat, ao lado de um cozinheiro que ia preparando os mantimentos para o primeiro e extenso dia do festival. Arrepio acompanhado de um contentamento interior: “estou no Roadburn, caramba”. Aquilo que Hahn ia debitando a solo, abraçado à sua guitarra, quase se tornava irrelevante perante o sentimento de plenitude por nos encontrarmos em Tilburg – sítio onde conflui, uma vez por ano, muito do que há de melhor na música. Dúvidas? Olhando para trás, lá estava ele, Michael Gira e o seu frondoso chapéu, em amena conversa com Guy Pinhas dos Goatsnake eThe Obsessed. /EP

Os Virus foram a primeira experiência séria no novo Het Patronaat, uma sala de uma solenidade que se revelaria pecaminosa durante os dias que se seguiriam – mas que não se imaginava mais perfeita para o efeito do festival. A banda tinha o cruel papel de aguentar o primeiro concerto no anexo da igreja da Heuvelring de Tilburg e fê-lo eficazmente, com o seu progressivo de uma limpidez ultra-densa. /AF

Os Agalloch, pelo seu lado, não revelaram mais do seria de esperar deles: a coexistência entre o post-rock e black metal é perfeita, essencialmente quando um não se impõe ao outro. A banda norte-americana conseguiu mostrar que o quer que façam não implica cedências. Conseguiram recriar ambientes tão belos e etéreos quanto crus e cruéis. /AF

Michael Gira estaria, também  ele, pelo palco principal da Het Patronaat, horas depois. Ao subir as escadas, já se ouvia o tom de voz de um homem que tem por hábito desafiar Jesus a aparecer diante de si – até hoje, Cristo ainda não teve coragem para enfrentar o indivíduo que berra impiedosamente Money Is Flesh. Desta vez, mais calmo, mas não menos intenso, Gira reinterpretou acusticamente vários temas da sua banda de sempre, entre os quais Jim e Eden Prison. O silêncio reverente da plateia sublinhou aquilo que já sabemos: o vocalista dos Swans detém uma aura que ultrapassa os seus contornos físicos. /EP

Pela 013, ao final da tarde, os suecos Saturnalia Temple lotaram a Green Room. Perfeitamente justificável. Numa espécie de versão escandinava dos Electric Wizard, a banda debitou uma das mais vagarosas e pesadas doses de doom de todo o festival, onde o riff, claro, sempre o riff, foi chefe de fileira. Num ambiente quase asfixiante, onde o azul intenso das luzes se assumiu psicotrópico, os Saturnalia Temple martelaram o córtex cerebral com a ensopada em droga Dreaming Out of Death. Acima, na Stage 01, os Christian Mistress iam apresentando Possession, um dos melhores discos de heavy metal dos últimos anos, razão suficiente para ter gente para lá da porta a assistir à actuação. /EP

Aos OM coube aquele que foi, provavelmente (uma palavra essencial num festival que nos deixa com tantos problemas existenciais), o concerto do festival. E porque generalizações são difíceis, utilize-se antes o plural confortável para dizer que foi, no mínimo, um dos melhores concertos do festival. As luzes estiveram acesas o tempo suficiente para se saber que Al Cisneros, Emil Amos e Rob Lichens Lowe eram mesmo as três personagens em palco, totalmente embriagados na sua própria capacidade hipnótica. Com o baixista de Sleep a liderar os corpos de todo o Main Stage com as melodias tão ritmadas, quentes e balançadas do baixo, qual encantador de homens, a sala cheia deixou-se levar nos contos mitológicos da banda, vivendo a experiência da meditação num acto puramente sonoro. Os OM conseguiram reduzir toda a existência ao aqui e ao agora fazendo o menor uso de artifícios possível, provando que Cisneros e companhia estão, indubitavelmente, num entendimento superior daquilo que é a comunicado por ondas de som. Se os OM não fossem das melhores bandas da actualidade, nenhum dos corpos presentes no Popodium de Tilburg abdicaria da sua liberdade para ficar à mercê dos norte-americanos, num momento verdadeiramente arrepiante. /AF

Também de (poucas) desilusões se faz o Roadburn e os Killing Joke acabaram por desapontar aqueles que aguardavam por um grande concerto das lendas britânicas. Tanto por um set que se concentrou em demasia em MMXII, tanto por uma atmosfera que pareceu demasiado fria e, quiçá, ainda anestesiada pela sova psíquica dos OM. Foi bom, ainda assim, olhar para um Jaz Coleman que continua igual a si próprio, numa órbita que é só sua e de mais ninguém. /EP

Os Ulver também conseguiram o impossível num festival que não teve maus concertos: protagonizar um momento que, independentemente dos avisos relativamente à actuação especial, não conseguiu convencer – e dizer isto dos noruegueses é, em boa verdade, dizer muito. O concerto dos Ulver teria, assim, cerca de cinco segundos de largo interesse, quando Rygg projectou a sua voz logo de início, marcando o arranque da apresentação da banda, que se ficou pelas versões dos anos 60. Quando havia uma oferta incrível ao mesmo tempo, esses primeiros segundos bastaram para não se levar um sabor amargo na memória. /AF

De regresso à minúscula Stage 01, e para fechar prematuramente o primeiro dia (à quinta-feira, os comboios para outras cidades terminam a circulação mais cedo), testemunhou-se a aparição dos Black Tusk, eles que são, cada vez mais, um nome forte do sludge sulista dos Estados Unidos. Por entre empurrões e esmagamentos (é o que dá estar numa sala lotada de indivíduos nórdicos), fruto do exíguo espaço da sala, entendeu-se o porquê da redobrada atenção que o grupo tem recebido nos últimos tempos – riffalhada esbofeteante, a ilustrar o que de melhor se faz nessa esfera que une o feeling redneck ao metal. /EP