Após destilar durante mais de uma hora de viagem, pisamos o solo do Valada nas cinzas de Grave Pleasures e somos deparados com o ecoar grotesco do vocalista dos Process Of Guilt. Sem que esperássemos tamanha voraz recepção, a banda portuguesa, como sempre, não desiludiu e deslindou “FÆMIN” já com os dois olhos postos no capítulo que se seguirá. De certeza que será bom. Na Praia, ao fundo, está a onda dos Los Waves, que embrulha o pouco público presente num bonito e vivaz espectáculo ao sunsetque antevê o cair da noite.
Ele fez-se de forma repentina, e anuncia-se num arrepio de espinha perante a presença dos Bizarra Locomotiva. Mergulhamos “Na Febre De Ícaro” pelas águas mais frias do oceano e encontramos o cativeiro de Úrsula e seus partners in crime – as moreias. Cuspindo ódio com o seu latex e shadow-eyes, Sidónio encaixa na perfeição na pele da vilã da “Pequena Sereia” temida por todos, se a fábula de Hans Christian Andersen virasse uma história contada nas tabernas extintas da Mutela. O chamamento de todas as forças do mar vem na sombra do “Mortuário” e solta-se num “Desgraçado de Bordo” cuspido à porta da Lisnave. Para terminar, sobem à superfície e vomitam o eterno “Escaravelho” no colo da viscosa raça humana.
Noutra dimensão, mais terrena, encontramos os Black Rainbowsa desgraçarem as cordas e as baquetas, belo rock boost antes do jantar. Os italianos fazem jus ao nome e amarram o público a uma espiral bicolor de escala cinzenta, selada com um nó cerebral que deixa os mais devotos aflitos para se desenlaçarem. Conclusão: estes fãs de MC5 não deram descanso. Aparecem depois osUfomammut com “Ecate” nos braços, esse seu álbum lançado pelaNeurot no início do ano – pesado, psicadélico, bruto, mas descaradamente ágil nas transições entre cada ritmo, qual Muhammed Ali de Piedmont, talvez esta tenha sido mesmo a melhor passagem do trio por Portugal pela força que aplicaram em cada tema, contrastando com a sonolência de uns Alcest cada vez mais indistintos
Abrandando o ritmo, mas continuando no rock, desce-se até ao delta blues – estalamos as vertebras e preparamos o corpinho para a dança. Jon Spencer e aliados brincam com as guitarras, puxam pela plateia para um twist improvisado e utilizam a harmónica como o instrumento de sedução. Com quase vinte e cinco anos de carreira em cima, estes nova-iorquinos possuem o ingrediente secreto para nos fazer mexer a anca e soltar a histeria, mas a plateia sintonizava já outras frequências que não as do frenesim.
A nossa sensibilidade sensorial começa a captar pequenas mensagens intergaláticas da NASA, altamente secretas. Rapidamente nos apercebemos de que é a forma que Al Cisnerosencontrou para nos dizer boa noite, na sua conhecida paixão pelo espaço. Prepara-se a sopa, enrolam-se mortalhas e acendem-se isqueiros – estamos prontos para o set da peregrinação jubilar. Uma nuvem de fumo se levanta ao som de “Sonic Titan”, esse laço pós-“Dopesmoker”, e uma luz azul celeste ganha vida nos corpos anestesiados que lentamente vão ficando prisioneiros num lençol encharcado de éter. Os nossos olhos insistem em cerrar. Subitamente, entramos em “Holy Montain” e na “Dopesmoker” colocada em Nazaré
Cresce uma sensação de permanente dormência, como se estivessemos a viver no sonho e na mente conturbada da personagem Bela Adormecida, mas que de certa forma é um dormitar reconfortante. Vagarosamente, os nossos olhos vão-se abrindo e tomando consciência do Eu, do tempo e espaço no momento em que o Jason Roeder deposita afinco na sua bateria sob o olhar de um trôpego Matt Pike à espera que “From Beyond” cresça. Embalados nesta melancolia, caminhamos para a mítica “Dragonaut” – veio o mosh inevitável – e “Aquarian”, quando somos incomodados por meia dúzia de parolos que se encontravam tristes pelos Sleep não estarem a comunicar com o público. O mais provável é terem-se enganado no percurso e queriam ir até ao festival do Crato para confratenizar.
O fumo persiste e as últimas ganzas estão-se a apagar. Permanecemos petrificados com “The Clarity” e o nosso corpo submerge naquela manta fofinha de feno. Passadas duas horas, o concerto prestes a terminar e desencadeia-se o ponto mais alto desta homeostasia – Al Cisneros deitado no palco a agradecer de forma enternecedora, uma benção. Saímos daquele palco profundamente comovidos e agradecidos. A noite acaba, não resta mais nada – Go home fellas, there’s nothing to see here.