Pedimos mais uma cerveja. A boca seca-se na inveja de não podermos ser os A Place To Bury Strangers. As guitarras esvoaçam, escangalham-se em queda livre. Sufocam até à morte, por entre gotas de suor e coágulos de feedback. As palavras do Oliver e do Jono soam espessas, imperceptíveis, não percebemos coisa alguma por entre aquela zaragata de ruído e contra-ruído. Fazemos como nos restaurantes chineses – ignoramos os cochichos dos empregados e fixamos os olhos no prato. Vamos buscar outra cerveja e os A Place To Bury Strangers vão buscar a «Don’t Hold Back» dos Dead Moon. Brindamos ao rock e damos a extrema unção àquelas guitarras já sem vida. Que concerto.

Não há ordem nesta crónica. Deixámos o senso cronológico enterrado no colo dos Electric Wizard. Quatro anos após Barcelos, emaranham-se numa plateia bem maior e roubam-nos o chão assim que «Supercoven» ganha aquele caparro de bully. Pá, claro que cheira a erva. A neblina do haxixe cruza-se com a humidade ribatejana num mirífico transe e, lá ao fundo, os Marshall vão rangendo os dentes para aguentar outra noite sob as vergastadas do Jus Oborn. O xerife do porno vintage e da memorabilia setentista acertou na formação actual – «Return Trip» soou mais possante do que alguma vez julgaríamos possível em 2014. Nada do novo álbum se ouviu. E então?

Recordamos os Psychic TV naquela dormência de quem, acabado de acordar, desagrafa as ramelas, aperta os ténis e tenta ordenar o sonho interrompido pelo despertador. Intromete-se a «Interstellar Overdrive» dos Pink Floyd, as danças proto-indígenas|post-Ian Curtis do sempre oxigenado Genesis P-Orridge (grande amigo do falecido acima mencionado) e um jogo visual que de tão berrante quase nos meteu a pensar nos tempos old school do Windows Media Player. Recapitulando, percebemos que a intenção era afogar o Valada numa seráfica hipnose pintalgada de azul-turquesa e amarelo fluorescente, estrutura após estrutura, movimento após movimento, mas o nosso estômago já não estava para grandes voltinhas no carrossel depois das bestas A Place To Bury Strangers.

Alguma coisa se passou com os Red Fang desde 2012. Quando abriram para Mastodon, pareciam capazes de chegar ao backstagedo Coliseu e oferecer umas aulas gratuitas de vitalidade ao Troy Sanders (bem precisa) – meteram o público a procurá-los no YouTube mal a noite acabou e, cumpridos mais uns quantos regressos a Portugal, são poucos os que metidos nisto do stoner ainda lhes fazem vista grossa. Ali, no Reverence, quiçá estoirados pelo jet lag de terem feito Portland – Lisboa há poucas horas, mostraram a mesma pujança dos Sourvein quando perdem a droga. Foi como provar um jantar aquecido no microondas vezes sem conta; longe de horrível, mas incapaz de nos fazer pedir por mais. Nem o som ajudou, numa das raras vezes que o stagenúmero um deu parte fraca – ouvimos mais as vozes desafinadas do que aquilo de que realmente apreciamos nos Fang: os riffs gingões.

Se vamos falar dos tiros ao lado, então os The Wytches foram aquele underdog que fica de pernas bambas mal entra no ringue principal. O seu rock estridente vacilou e, vá lá, que mais poderíamos esperar de uma banda que nos faz pensar na «Love Buzz» dos Nirvana com um Kurt Cobain acabado de exumar? Também resgatados de um cemitério onde moram os casacos de ganga Denim, assistir aos Swervedriver foi como ver o Al Pacino num filme do Adam Sandler – reconhecer o momento certo para arrumar as botas é um bonito sinal de sapiência e regressar do panteão shoegazer, visto o concerto em Valada, foi mal jogado.

Aos Mão Morta é que já lhes reconheciam o direito à imortalidade. Luxúria Canibal cagou nas figuras de estilo e «Direito Ao Suicídio» sintetiza o actual modus operandi– curto e grosso, de gatilho meio apertado. Há um rancor não-plástico, um pestilento ódio recuperado dos nauseabundos vómitos cuspidos na tal latrina irrespirável. As tetas da alienação secaram e cá rastejamos prostrados num desmame anómico, que os Mão Morta desrespeitam palavra a palavra. Que se lixe a big fun de Amesterdão – em Valada, fomos até «Berlim (Morreu A Nove)» numa viagem pouco inocente, de mãos ensaguentadas com direito ao profético cocktail de «Charles Manson» e Putin. Acabou-se orock n rollar que o tempo é de assassinar. Também os Process Of Guilt parecem cada vez mais rabugentos – no palco Sabotage, o cerimonial desceu àquela sarjeta niilista onde o Justin K Broadrick se enfiou após degolar os Godflesh com «Jesu». Aquele primeiro movimento de «Liar» faz-nos piamente crer numa natureza que se está nas tintas para o ser humano… YOU’RE FUCKED, YOU’VE LOST.

Os Graveyard estão nos antípodas da crise existencial. Para eles, está tudo óptimo desde que não lhes estoiremos a bolha seventiesonde habitam e mandam aquela pintarola crooner de guedelha comprida sacada aos Zeppelin. O tesão pelo «Hisingen Blues» esmoreceu e o concerto do Milhões arrisca-se a jamais ser (sequer) igualado, mas a passagem pelo Ribatejo teve swingadablues quanto baste para ficarmos contentes. Ah!, e por alturas de 2011 a «Slow Motion Countdown» não existia, portanto o Reverence ficou a ganhar nessa alínea. Os White Hills também nos pareceram melhorzinhos no Amplifest há uns anitos. Vai daí e a culpa é daquele PA anémico oferecido ao Palco Rio. Precisávamos de sentir aqueles graves javardolas na epiderme, mas os nova-iorquinos pareceram sempre um carro de Fórmula 1 entalado no IC19. Mais do que entalados, os Crippled Black Phoenix, com provável direito a entrar na associação de famílias numerosas, acotovelaram-se e deram o litro para nos provarem que a madrugada num festival não se cumpre exclusivamente no after-hours – é possível soltar a lagrimita emocional de quem vê no rock dos CBP a sideral evolução da mais humilde folk. Uma sala portuguesa aguarda-os.

Que os Hawkwind são rock-omniscientes não duvidamos. Quem de tudo fez um pouco, ao longo de quase cinquenta anos, dificuldade tem em resumir tamanha odisseia – no Reverence, com o merecido estatuto de headliners, a banda de Dave Brock tentou condensar uma homérica carreira em noventa minutos. Mas, se a palavra nos fosse dada, às tantas preferíamos concentrar-nos naquele «Hall Of The Mountain Grill» (revisitado em «You’d Better Believe It) e nesse admirável «Warrior On The Edge Of Time» (dele ouvimos «Assault And Battery») só para nos regozijarmos com essa maravilha que foram os anos dos Hawkwind na companhia do Lemmy. Não nos foi dada essa prenda e os britânicos, com um vocalista certamente saído da linha de montagem que produziu Rob Halford, recapitularam mornamente o que em potência poderia ter sido um concerto memorável.

E The Black Angels… O vosso altar está já por aqui a ser montado. A sério, que foi aquilo? Ainda há gigs assim? Embutidos num irrepreensível fluxo de soturna acidez, fomos arrastados pela mansidão do southern – perfeito exercício de groove, de psicose vibrante, de graves afogueados pelo árido deserto que une umbilicalmente os Estados Unidos ao México. Vivemos na borderdurante hora e meia e não nos importávamos de ceder a cidadania portuguesa se com isso ganhássemos asilo no reino dos Black Angels, onde o grave é chefe de Estado e a ecoante voz de Alex Maas, como se Grace Slick tivesse encarnado num homem barbudo, merece culto. Até as projecções visuais foram das melhores que já pusemos a vista em cima – vamos voltar àquele final com a senhoril «Young Men Dead», sim? Por favor?