Há não muito tempo, por cá, seria invulgar e exótica a ideia de ter como cabeça de cartaz em festivais de verão artistas hip-hop e adjacentes, até mesmo apenas um ou outro nome do estilo a meio da tabela em festivais era assinalável e, para uma residual comunidade, motivo de celebração, e uma pequena vitória para o género. Certas marés tardam seriamente em chegar a este lado do Atlântico e, o hip-hop, foi uma dessas – mais de duas décadas depois de ter sido o the next big thing nos EUA, França, mais recentemente na Alemanha ou em Espanha e, de resto, um pouco por todo o globo ocidental, e fora dele – , o hip-hop toma também conta do mainstream luso.
Aconteceu, com declives, o crescimento da cultura hip-hop em Portugal. Em 1994, uma vaga repentina que, não sabendo nadar (Black Company ainda chegou a figurar no cartaz do primeiro SBSR, em 1995), rapidamente se afogou na euforia e no desconhecimento desses noventas, espumando-se. Ressurgindo no final dessa década, revigorado no submundo, onde permaneceu com raras precárias no grande público. Os primeiros anos dois mil foram os anos de ouro – quando saíram os álbuns hoje considerados clássicos, ou esquecidos, quando os media e as editoras começaram a flirtar com os niggas – quando quase explodiu. Não explodiu – foi explodindo – até ser evidente que é isso que a malta quer ouvir. Já em 2006, o Super Bock Super Rock, tinha aberto os olhos para a emergência dos ritmos urbanos e de origem africana, à boleia da onda de sucesso galopante do rapper 50 Cent, dedicando um dia do festival, numa versão “XL”, ao hip-hop, encabeçado pelo norte-americano dos nove tiros, ao qual se juntaram Pharrel Williams, Boss Ac e os angolanos Kalibrados. Houve afronta, estranheza afectada, indignação comezinha e, a esta distância temporal, é de ressalvar o facto de há uma década as caixas de comentários on-line não serem tão concorridas. Hoje são-no sobremaneira mas não há comentários, e é de novamente o SBSR a apresentar um cartaz com uma forte representação do mundo hip hip, além de um dia exclusivo ao estilo, o único dos três com lotação esgotada, mas… “onde está o rock?”; pois, o rock… está para os grandes eventos de música como o Iggy Pop está para a cova: aparentemente, cada vez mais longe.
Sentimento de “No Fun” talvez para o titã do punk, de pele encouraçada e a tonalidade de um espectro no olhar, da voz e dos gestos esganiçados e lascivos – ou será que o cota Iggy sente hip-hop? Pouco provável. Assim como o facto de ter sido possível nem nos lembrarmos durante a sua performance que estava perante nós um praticamente septuagenário. Não, estávamos simplesmente perante um grande concerto, de um artista singular apresentando novas canções, e que, por acréscimo, marcou inusitadamente o mundo da música no final dos anos sessenta. Os gestos corporais galináceos, chefe da capoeira, a pujança, a provocação, os palavrões abundantes, a tirania imparável do seu carisma e estatuto. Iggy corre em frente às grades, entre o público e por toda a extensão do palco, Iggy ajoelha-se, pontapeia o tripé do microfone, cospe para o público. Será que alguém levou e ficou ao rubro com alguma daquelas gosmas ? Será que alguém se projectou de modo a apanhar com uma na bochecha? Ou simplesmente aquelas gosmas de rock’n’roll caíram incólumes na plateia sem que delas se saiba o paradeiro e pousio?
Foi o primeiro grande momento, no segundo dia, e outro maior se seguiria, com Massive Attack & Young Fathers. Um dia antes, exactamente há mesma hora, os The National cumpriram mais uma actuação em solo nacional – como costume – levados ao colo pelo seu público, numa perfeita performance, sem quebras e sem queixas. As músicas melancólicas cheias de amores perdidos, solidão e angustia combinam na perfeição com a aura sofredora lusa. Matt Berninger é dono de uma voz absorvente e de uma verve invulgar, de que não damos conta, que nos apanha nas entrelinhas, por meias palavras, onde nunca fica tudo dito. Pouco antes os portugueses Peixe Avião quase partiram os instrumentos numa revigorante dragagem noise no palco Antena 3, perante uma plateia ainda mais dragada.
A tarde nesse dia começara amena, com Alek Rein junto às escadarias do Meo Arena, no luso palco Antena 3, num estágio eficaz para aquela hora e temperatura, em que conseguimos apenas bater o pé e menear levemente a cabeça sem suar muito, ao sabor dos riffs balneares, acompanhados por baixo e bateria. No outro extremo do recinto, um pouco antes no mais agradável palco EDP, de frente para Tejo, harpas, pianos e cordas ténues exalam dos dedos sintetizados de Débora Umbelino, que múrmura levemente em inglês. Palco esse que assistiu quiçá à sua maior enchente duas vezes seguidas nesse dia, com os concertos de Kurt Vile e, particularmente, Jamie XX, que se repetiu quase na mesma escala no dia seguinte com Mac DeMarco, dia 15, depois do concerto dos cativantes Rhye, com a voz encorpada e feminina de Michael Milosh a evocar um soul transparente que lidera em cenários r’n’b instrospectivos cheios de groove e fruição disco, teclados e synths, camadas sensuais e brandas de cabaret, baixo gingão colado ao bombo.
A madrugada estava guardada para o histórico DJ Shadow, mestre da mesa de mistura que lembrou e elucidou no palco Carlsberg perante uma plateia cheia em desmobilização o que é turntablims. Pois a maioria dos DJ’s da praça põe som a tocar e muda. Disc jockey é quem mexe nos discos e com eles constrói o castelo de cartas desde a raiz, com dedos cirúrgicos, bombo, tarola e prato no horizonte, o baixo trilha o caminho, sample aqui, sample ali, quem parte e reergue com os fragmentos, risca e pinta o quadro com o mesmo lápis de dois gumes, monta e desmonta catalisadores de emoções e energia, só ali.
Os dois primeiros dias no recinto começaram com escassa afluência, o que o muito calor em grande medida explicará, restando apenas algumas centenas de pessoas com os seus chapéus de palha da EDP espalhados pelos dois palcos exteriores – algo notório nas primeiras actuações do dia, como em Pás De Probleme, Petite Noir ou Bassed Hounds. Excepções para Alek Rein e, largamente, para Slow J, no último dia – onde foi notória a diferença no número de público relativamente aos primeiros dois – bem como a qualidade e veia de artista do miúdo.
Mas antes disso vimos Massive Attack em junção com o trio escocês Young Fathers. Os ingleses já são habituais no festival desde 1996 e, quem recorda os seus concertos, não tem resquícios de desilusão. Mas desta vez há uma novidade, além da já anunciada morte do trip-hop, devido à proliferação de géneros em sintonia com a germinação de produtores e técnicas que a crescente tecnologia potenciou, que é a desconfiança de adicionar algo novo a uma marca até então intocável e, o melhor de tudo, é que continuamos sem razões para nos desiludirmos – o que é raro na longevidade. Os Massive Attack & Young Fathers deram a actuação do festival. Um conceito visual simples, largos e capazes executantes, vozes rebuscadas na perfeição para cada ambiente. A banda inglesa, mesmo após a saída de um dos seus fundadores, tem-se assim mantido. Sem tiques pop. Com uma divisão patente entre a banda e os seus êxitos intemporais e o trabalho realizado com o trio Young Fathers, que entrou em palco a meio da actuação para encabeçar quatro músicas, encaixando na banda o vigor e a basófia das suas interpretações bem como o ritmo moderno das sonoridades trap.
Tão avassalador como a enchente delirante da noite de 16 de Julho no Meo Arena com Kendrick Lamar, foi o entardecer no palco Antena 3 com Slow J, onde de cara virada para um sol castigador uma multidão assistiu o rapper concretizar uma actuação espantosamente segura e contundente para quem há pouco menos de um ano lançava a primeira música na internet. O que mais impressiona são as construções sonoras simples e sólidas, adjectivos que se aplicam também aos conceitos das letras – uma junção vencedora. Sonoridade e abordagem frescas transfiguradas ao vivo por Fred Ferreira na bateria eléctrica e Francis Dale nos teclados e sintetizador. O largo e contagiado público só queria mais. E é neste ponto que, tão ou mais relativamente ao fenómeno global que é K-Dot, transparece o estado de popularidade a que chegou o hip-hop por cá: quando o romper do dia de festival protagoniza a maior enchente do ‘palco tuga’, só comparável à também assinalável plateia em Capitão Fausto, mas apenas porque a banda actuou em simultâneo com o concerto de Iggy Pop no Meo Arena, o que rivaliza com o calor.
Mas maior, bem maior, que a enchente em Iggy Pop, que já ultrapassara a dos ingleses The National no primeiro dia, foi a do rapper do momento, o artista do momento, o fenómeno do momento: Kendrick Lamar. Raparigas choram na front line. O rapper está acompanhado por um padrão de banda clássico com bateria, baixo, guitarra e teclados. Euforia, uivos, gritinhos, êxito após êxito, todavia nenhum registo musical a assinalar. Apenas injecções eficazes, mas não letais. É irónico quando parece que críticos descobriram o jazz, o soul e o funk no hip-hop em 2015. Algo que os De La Soul fazem desde 1987. E que continuam a fazer, trazendo com eles a irreverência que caracteriza o rap, logo desde o início, ao aborrecerem os fotógrafos no seu mister dizendo-lhes para largarem as cameras e curtirem um pouco, com Posdnuos a tapar com a palma da mão a frenética camera de Rita Carmo, a única ainda a disparar, porém logo um sorriso e um dedo no ar se trocaram entre o Mc e a fotógrafa. Um momento descontraído e saudoso dos noventa protagonizaram os dois Mc’s e DJ de Long Island no Meo Arena. Isto antes de outro momento capaz de orgulhar Ottis Redding ou Curtis Mayfield. Orelha Negra a abrir o palco principal, com o som definitavemente mais límpido da noite e um véu branco a cobrir o palco nos primeiros minutos, em que apenas vislumbrávamos as sombras dos movimentos em uníssono do outro lado, dançantes, como o som que emana das colunas nos induz. A química entre os cinco elementos é exímia, e a quantidade e qualidade de loops e medleys que têm na cartola tem potencial para rockar plateias aqui e em qualquer lugar.
O festival acabou com DJ Ride e um dj set de Batida pelo mentor do projecto Pedro Coquenão, no palco Carlsberg a abarrotar. De novo uma experiência tranquila e não muito congestionada junto ao Tejo, com menos tendência para o freakshow e com mais bandas. O que se saúda, evidentemente.