Há quanto tempo é que isto não é limpo, é o que me vem à cabeça enquanto me estico para apanhar uma garrafa de água — inspiro, expiro — a heroína é o meu segundo instinto, uma coisa linda, tira-me uma foto, assim, não, mais para o lado, quero que apanhes o retrato do meu pai ali na cómoda, isso, isso, clic, fiquei bem?, tenho os lábios muito brancos, que é que achas, é capaz de ser anemia? — às vezes lembras-me o teu bisavô quando te ris, quando és simpático, mas depois vejo-te com isso amarrado ao braço e já não sei, fico sem certezas, tipo tu queres morrer assim sem mais nem menos?, como se fosses um daqueles coreanos que sofrem de… ai, como é que se chama?, hwabyeong, acho que é assim, deve ser por isso que eles lá têm a mais alta taxa de suicídio do mundo, às tantas na família temos todos sangue coreano e ninguém descobriu, por acaso acho que um tio-avô nosso emigrou para a América há muitos, muitos anos, achas que ele obrigam os imigrantes a ir para a guerra também?, desaperta lá isso, estás-me a fazer impressão com essa gaita aí fixada, eu não posso beber contigo, tenho de conduzir, só posso ficar mais um bocadinho, sabes perfeitamente onde eu tenho de ir — sonhei que tinhas asas, como se fossem élitros cravados no chumbo, tinhas um estômago de gelo que se desmultiplicava em pérolas brancas que cheiravam àquele Março que nunca se ia embora, não havia natal e também não era preciso, estávamos contentes assim, tu de asas, eu trancado, sonhei que bebia e eu, quando bebo, bebo muito, mesmo em sonhos, deixa-me só ficar o teu relógio porque eu preciso de saber a quantas ando, cortaram-me a luz, vieram cá e nem bateram à porta só para tu veres como eles são os cabrões — sou todo ouvidos, eu sei que precisas de me contar o que passou no domingo, mas sabes que eu tenho de ir, ainda preciso de passar pela baixa e agora que me lembro nem sei se tranquei a porta de casa — sinto um frio estranho, se calhar são outra vez os problemas na epiglote, devo ser o único agarrado que tem medo de agulhas, e aposto que deve haver a merda de um nome para esta fobia, às vezes penso se não sou um Napoleão sem revolução, um rapazito preso a uma tristezazita analfabeta que só precisava de um catalisador para conquistar a Valáquia, Konigsberg, tipo um novo Mehmet, e parar de chorar como se tivesse um casaco de muco preso às ventas, um cachecol de ranho peçonhento que está para os depressivos como o mijo está para os incontinentes, limpo-me à manga da camisola entre jorradas salivares anormais, olho-te de esguelha e tu já estás naquela de deixar de lado os planos para esta tarde, esquecer o jejum e sentar-te aqui porque a que eu tenho dá para te adormecer de vez, e quem é que não quer morrer só por um bocadinho, um intervalozito, nós voltamos já Sr. Telespectador, fique connosco porque ainda temos muita animação na terceira parte do nosso programa, vamos ter aqui o capitão da selecção portuguesa de voleibol que nos vai mostrar como servir para fechar a negra, como é bom ter a morte fechadinha num envelope de pano, ao lado o diploma de licenciatura em engenharia aeroespacial a ganhar pó, foi nisto que me meti e agora já não saio — tens de tratar essas angústias, sabes que não podes continuar assim a viver num limbo existencial como se te projectasses mentalmente nas cataratas do Niágara mas sem nunca teres tomates para molhar sequer os pezinhos quando vais à praia, eu sei porque é que te expulsaram no domingo e sei que foi mau da parte deles terem chamado a polícia só para te humilharem na frente de todos, aquelas luzes azuis não paravam de girar, foi como se estivesses embalsamado num carrossel com cheiro a vergonha, mas também não precisavas de lhe ter puxado os cabelos assim sem mais nem menos, arrastaste-o pelo chão e enfiaste-lhe a cartolina com a roda dos alimentos pela garganta abaixo e ainda pegaste num bocado de feldspato e chispaste-lhe dois dentes da frente, agora precisas de te acalmar e precisas de largar isso de uma vez por todas, abrir as persianas, deixar o sol entrar, um banho de sal grosso também não te faria mal, esta casa só cheira a tabaco, e tira-me essa barbicha por favor, hoje não, que está nevoeiro, mas amanhã devias dar uma volta pelo parque, se calhar passo cá para ir contigo e falamos melhor, deixa estar que eu levo o lixo para abaixo agora, não te preocupes, até amanhã.
Prurient - "Frozen Niagara Falls"
9.5Profound Lore