Eu juro que se por algum motivo eu finar amanhã, vou aceitar feliz qualquer que seja o meu destino. A culpa é de João Peste, o mestre maestro de influência dadaísta que orquestrou uns Pop Dell’Arte exímios, históricos e que conquistaram uma Culturgest só por terem subido ao palco.
Aviso: é-me difícil distanciar convenientemente dos Pop Dell’Arte, por isso sintam-se à vontade para apontar uma ou outra falha parcial que detectem no texto.
A história começou há mais de um quarto de século, em Campo de Ourique. O percurso sempre foi um reflexo exemplar das maiores inspirações de João Peste. Aqui e ali é fácil ouvirmos – sim, ouvir e não apenas ver – surrealismo e muito dadaísmo, com tudo o que tem de bom. Ou mau, porque nestas coisas da arte há quem diga que que é preciso ter um gosto adquirido para digerir certas coisas. Que ideia…
Assim, comecemos logo pela voz de João Peste, tão forte a remar contra a corrente musical e a conduzir uma banda ritmicamente exemplar. Sentado num banco alto, homem estátua em transe, poeta trágico agitador de mentes… A manipulação singular daquela voz forte contrasta gravemente com a figura magra e quase doente de Peste, mas seria impensável Pop Dell’Arte sem esta voz. Até porque só esta voz é capaz de letras tão geniais como a recente Ritual Transdisco, canção grave e viscosa, ou O Amor é… um Gajo Estranho, hino de outros dias que ainda soa tão actual e arranca aplausos com vontade. E eu pelo menos não diria que Peste se ia atirar de cabeça às peças La Nostra Ferocee Har Megido’s Lullaby, conquistadoras com a sua sonoridade praticamente a cappella.
Depois, foquemo-nos em Contra Mundum a início: a sua música espelha a contra-corrente que os Pop Dell’Arte sempre insistiram em alimentar, sem obedecer a convenções e quebrando com dogmas, e é calma (calmo não é mau!), mas de uma calmia inquietante e desconfortável. Tiveram o mérito de embeber lentamente o público num ambiente único e estranho ao mesmo tempo. Apenas para depois pegarem na Culturgest e partir numa retrospectiva de toda a carreira da banda lisboeta. O desconforto tornado celebração massiva entre os corpos que estavam sentados apenas por conveniência, porque em boa verdade o ambiente pedia público em pé.
A garra com que os Pop Dell’Arte sempre se atiraram à sua arte é outro dos factores impressionantes que ainda não esmoreceu. Ontem, Zé Pedro Moura foi um pêndulo, uma trave mestra na pop que não é pop – é pop quase punk, mas para quê os rótulos? – e está em oposição directa com aquilo que por aí se faz – e aquilo que por aqui se fez durante tanto tempo. Um ‘boa noite’, um ‘obrigado’, bastava para João Peste e a banda se aproximarem de um público que ali estava por eles.
As letras incompreensivelmente claras, que vagueiam entre o espanhol, alemão, português, inglês e dada, espelham este universo de colagens de imagens que os Pop Dell’Arte foram criando. E quando o som tirava pujança a alguns temas, ficávamos perante a voz manipulada e hipnótica de João Peste. Rica em substância e textura.
Aqui e ali era possível ouvir gritos de incentivo («Ah grande João!» foi uma constante), ali e aqui havia quem aproveitasse para se levantar e dar um escorreito passo de dança sempre que possível. O ambiente era de recordação e as projecções em fundo de palco ajudavam a andar para trás no tempo e a entrar facilmente na mente da banda. Não faltaram clássicos como Sonhos Pop, Avanti Marinaio, Illogik Plastik e, claro, o gigante Juramento Sem Bandeira.
Ninguém queria sair dali, por isso os três encores acabaram por ser naturais e bem vividos por todos: banda e público. Uma retrospectiva que acabou por se revelar ricamente vertiginosa, tal foi a forma como mergulhámos na intempérie de colagens, imagens e sons (por vezes) intrincados que os Pop Dell’Arte souberam criar nos últimos anos. Sem género, mas com um espírito corpóreo, saúda-se que a banda de Campo de Ourique se tenha esquivado à chuva e continue contra um mundo oco e vazio de polícias rockstar, com fardas que ainda não são feitas de luzes néon.
Juro e prometo que hoje vou dormir melhor.