O pequeno-almoço dos campeões toma-se tarde o suficiente para se tornar almoço nesta quinta-feira que será, previsivelmente, de enchente. O sol faz-se acompanhar hoje de algumas nuvens, mas nem por isso afasta os corpos desnudos das margens da praia fluvial, sejam eles gordos ou magros, altos ou baixos, brancos como a cal – como eu – ou exibindo grandes bronzeados. No rio não se contam muitos corpos para além dos corajosos mergulhadores; a água é gelada e temem-se as perdas de membros inferiores. Já o tráfego de embarcações continua em alta, com vários remadores e demais botes boiando suavemente e ocasionalmente chocando uns contra os outros, inevitável destino destes carrinhos de choque sem rodas. Entre os veraneantes estão membros de bandas, mas não Ryley Walker – esse estará a meio da tarde bem lá em cima, na vila de Paredes de Coura, tocando sozinho para um público restrito, nas já famosas Vodafone Music Sessions.

Será também o norte-americano a inaugurar o palco principal, ao final de tarde deste que será o primeiro dia com ambos os palcos em actividade plena, de guitarra no colo, pose descontraída e farta cabeleira debaixo do chapéu. Acompanhado na bateria e baixo, o intérprete dedilha bonitas e sólidas histórias num tom lento e bem mais velho que ele, sito algures entre o folk e os blues. No entanto, pouco mais de uma centena de pessoas o acompanhará no público, provavelmente ainda lavando o rio e a relva dos seus cabelos e vestindo os seus melhores fatos para a noite, ou talvez recuperando a compostura após um determinado set de um grupo de djs afecto a bebidas brancas e à remoção de vestuário, que poucas horas antes havia passado música lá em cima na vila.

Quem estreia o palco secundário é a espanhola Joana Serrat, vestindo bonita peça e de franja sobre a linha da sobrancelha, delineando no tremeluzente timbre da sua voz encantadoras melodias que encontramos tradicionalmente no folk rural americano ou canadiano. Aliás, é de facto estranho reconhecermos quase um sotaque das zonas mais áridas e frias da América do Norte na catalã, tamanha é a inspiração. Apresenta-nos álbum recente na algibeira, de trato sensível e intimista e dedilhares rápidos, chamando ali vários curiosos que haviam, entretanto, chegado ao recinto.

Viagem rápida de volta ao palco principal traz-nos os norte-americanos Whitney, estes claramente já bem conhecidos do público, que se aninha nas suas toalhas de brinde e na relva para assistirem ao concerto. Entre linhas de guitarra descomprometidas e melodiosas, seguindo um rumo sonoro pop inocente, de trato fácil e quase adolescente, vamos descobrindo Whitney como uma entidade própria, que utiliza as valências instrumentais da banda e a voz de tom forçadamente altíssimo de Julien Ehrlich, anterior membro dos Unknown Mortal Orchestra e simultaneamente o baterista da banda, para nos contar os seus desamores, a sua forma de lidar com eles e a parca vontade que lhe resta em as repetir, assuntos em que certamente todos nos reveremos, e que todos poderemos colocar em perspectiva enquanto batemos o pé e agitamos a cabeça.

Uma passagem rápida na zona de restauração para um hambúrguer sobrevalorizado e umas batatas fritas râncidas e já aterrámos no energético concerto dos bracarenses Bed Legs, que apontaram ao céu que não se via da tenda do palco secundário para fazerem ecoar tão longe quanto puderam o seu power rock à antiga. E demonstram algum potencial, mas sentimo-los demasiado verdes e pouco vividos para acreditarmos na sua vivência sonora. Há muita vontade e atitude de louvar no grupo, mas falta “bagaço” na voz, calo na guitarra e músculo na bateria, ficando a meio a viagem pelos terrenos mais agressivos do blues. Valorizamos o salto para o público, no entanto – vimos pior no Jogos Olímpicos.

A revelação do dia viria de seguida em pleno palco principal, e com menos material do que aquele que levámos nós para a área de imprensa. Munidos apenas de um caixote onde poisam um portátil, os ingleses Sleaford Mods chegaram até nós de forma abrasiva e agressiva, como uma arma de porte pequeno mas de forte rechaço. Jason Williamson é a voz encarregue de irromper pela atmosfera até aqui relaxada de Paredes de Coura com a urgência feroz de um reaccionário, trazendo para cima da mesa e no seu carregadíssimo e de alguma forma encantador sotaque temas altamente políticos e quotidianos. Não é fácil decifrar-lhe a linguagem, entre o dito sotaque, a velocidade com que fala, ainda que aparentemente sem falhas lexicais, e o humorismo calão, mas ficamos facilmente hipnotizados e presos a cada vírgula que conseguimos entender, dedicada à decadência de um mundo chamado ‘moderno’, mas que continua a tratar as pessoas das classes mais baixas como meros peões, atingindo ainda no seu discurso o seu país e as posições mais recentes, como a do Brexit. Acompanhado por Andrew Fearn, criador das batidas e melodias minimalistas que embalam as mensagens, e que em palco se limita a comicamente carregar no botão de play. Tudo no duo é de uma simplicidade deliciosa e ao mesmo tempo de uma forte razão, que nos prenderam do início ao fim e nos fez levantar para bater palmas e desejar mais líderes sindicalistas assim.

De uma consciência política para a seguinte, aos britânicos se seguiram os norte-americanos Algiers, provavelmente o maior híbrido musical de todo o cartaz. Unindo o cariz pós-punk a algum experimentalismo instrumental e à voz coral do vocalista, com raízes no gospel. Reconhecemos o baterista de memórias anteriores com os Bloc Party, sendo esta uma aventura totalmente diferente da melódica jovial dos ingleses; a sonoridade dos Algiers é quase sempre séria, exigente e arrebatadora, conseguindo comunicar o sofrimento gerado pela descriminação racial e pela diferenciação social, com ecos que nos parecem ensombrar por detrás da afiada voz de Franklin Fischer.

Frustrações reunidas, hora de as soltar com os repetentes Thee Oh Sees. Eles que há dois anos vieram levantar o toldo do palco secundário, e que desta vez viram ser-lhes dada toda a liberdade do palco principal para fazerem saltar toda a relva do chão. Confortavelmente localizados na zona de ninguém que teoricamente separa o psicadélico do rock de garagem e do punk, os norte-americanos fazem da porrada sonora a sua linguagem, e por entre riffs cortantes e (duas) baterias musculadas, revelam a sua mestria em fazer levantar corpos e agitar públicos. De uma energia indomável e um alinhamento vibrante, fizeram da máquina de fumos uma vergonha, dado o pó que fizeram gerar na audiência.

E falando da libertação de frustrações, sabemos de muito e bom público desapontado pelo cancelamento da norte-americana Sharon Jones e os seus Dap-Kings, ela que se viu obrigada à medida devido a problemas de saúde provavelmente relacionados com o cancro de que ainda se ressente. Alheios aos factos, a organização chamou de urgência a muito mais jovem Shura para tomar o seu lugar no cartaz, mas não no alinhamento. A jovem inglesa de raízes russas ainda terá muito a provar antes de aspirar a tal comparação, mas por enquanto vai despontando com alguma segurança com músicas deslizantes no campo da pop electrónica, embora a música que faz ainda soe algo genérica. O público era, no entanto, bastante reduzido para receber a artista, visto que o prato principal do dia, e na verdade de todo o certame, estava prestes a fazer a sua entrada do outro lado do recinto.

Olhamos em volta e estamos completamente cercados de gente; não existe pedaço de chão disponível em toda a linha que a vista alcança. A tensão sente-se no ar enquanto as luzes baixam e toda a gente olha fixamente para o imenso aparato tecnológico que entretanto foi montado em cima do palco, enchendo-o de uma quantidade imensa de parafernália instrumental. O chão treme e a multidão entra em êxtase – um por um, os membros dos LCD Soundsystem entram em palco.

The time has come / the time has come today!” Dois anos apenas após aquele que se pensava ser o último concerto dos norte-americanos, liderados pelo icónico James Murphy, a electrizante presença de palco da banda une-se ao bater do coração e às notas que se soltam do digital e do sintético auditivo e se confundem com o analógico dos nossos corpos, numa dança que vai crescendo com o ritmo e a empolgação. “Us v Them” deixa-nos a saltar à primeira malha e vai desaguar na esperada “Daft Punk is Playing At My House”, em versão que une o funk e o electrónico minimalista, e que sentimos muito mais dançável.

Toda a banda se estende e se agita e faz agitar o público a cada malha a partir daqui, em especial o teclista, que exibe brilhantes passos de disco no meio da máquina. Todos eles parte fundamental de uma máquina que encaixa e se transforma da melhor maneira a cada faixa à volta do maestro. Atrás deles, as luzes encandeiam-nos e guiam-nos por entre os efeitos visuais com que nos presenteiam, num espectáculo perfeitamente ilustrado e reforçando meticulosamente a força e o ritmo da música.

You wanted a hit / But maybe we don’t do hits”. A provocação é óbvia, mas os singles que nos acompanharam pelos últimos quase quinze anos sucedem-se, num alinhamento medido pela nostalgia e em que até poderiam ter aparecido duas ou três mais faixas, mas pelas quais nem demos falta, praticamente sempre agarrados a cada batida desta dança sorridente e constante, que apenas pausa para uma das baladas mais bonitas e ao mesmo tempo críticas, cantada em coro e em plenos pulmões por uma plateia que se inicia no rio e se estende até às árvores e aos pontos mais altos.

Paredes de Coura I love you / But you’re bringing me down”, ouve-se e sente-se, à medida que nos apercebemos que o término está perto, e tão urgente nos parece que se estenda pela eternidade, deixando-nos permanecer na sua atmosfera entorpecedora. No último esforço, Murphy relembra a última passagem por aquele palco, no longínquo ano de 2014, onde faria honras ao lado dos Mötorhead; e ao desaparecido Lemmy dedica a última parte do seu concerto. Pela altura em que ouvimos a última nota de “All my Friends”, sentimo-nos mesmo unidos umbilicalmente pela experiência, prontos até a chamar os chatos galegos que nos acompanharam de irmãos.

Passaram quase duas horas e os nossos corpos parecem dar de si, saciados. Nem na melhor das expectativas havíamos esperado tamanho espectáculo, a ponto de nos esgotar as emoções. Queremos dar a atenção que os Suuns nos merecem, eles que terão a responsabilidade de guiar o after noite dentro, mas sentimo-nos demasiado dormentes para gozar na sua totalidade os característicos riffs zurzidores da guitarra e os baixos que engolem gente com a sua força gutural. Seguimos caminho pouco depois, com o céu a fechar-se em copas, mas largos sorrisos iluminando as nossas caras.