Sábado é historicamente um dia agridoce em Paredes de Coura. É afinal o dia em que o pequeno-almoço é tomado em silêncio, tentando reter todos os muitos momentos vividos até aqui com o regresso à rotina pairando de forma ameaçadora sobre as nossas cabeças. Acendendo uma fogueira dentro de nós que nos faz reunir os amigos, aqueles a que nos juntamos todos os anos em redor desta vila onde nada acontece e onde tudo acontece, por forma a esticar o tempo e a enchê-lo de sorrisos e mimos e aventuras.
Durante a tarde, e em conferência de imprensa, João Carvalho, o director da Ritmos, enaltece o grandioso concerto dos LCD Soundsystem e coloca-o no olimpo da história do Vodafone Paredes de Coura, ao lado de enormes memórias como Arcade Fire em 2005, ou Queens of the Stone Age em 2003. Classifica ainda esta edição do festival como uma das melhores, colocando especial ênfase na logística superior que foi desenvolvida, nas infraestruturas e nas condições criadas para campistas e visitantes. Para segundo plano ficaram as notícias de que cerca de duas centenas de festivaleiros se haviam encaminhado para o hospital local durante a madrugada, vítimas de fortes gastroenterites provocadas, ao que parece, pela qualidade da água de uma fonte ligada ao rio. O responsável do festival elevou ainda a fasquia para o ano seguinte: entre os dias 16 e 19 de Agosto de 2017, comemorar-se-ão os 25 anos do festival.
Mas porque de música e desta edição aqui se fala, discutiremos então os bandeirantes The Last Internationale, norte-americanos de gema que de início nos levam a pensar que talvez se tenham enganado no festival e assinado a rotina de uma Festa do Avante, tendo preenchido o ecrã atrás de si com uma imagem com a frase “este banner mata fascistas!”, em bom português provavelmente traduzido pelo guitarrista do grupo, luso-descendente da zona de Arcos de Valdevez. Encarnando a personagem de poderosa militante e portadora de uma caixa vocal impressionante, que um apoio instrumental primário sacado entre os blues e um rock n’roll temerário vão fazendo destacar, Delila Paz vai gritando entre canções que o poder pertence ao povo, desviando para si rasgos de aplauso da zona das grades.
Saltitamos para a outra ponta do recinto para assistir à união em palco de dois dos mais talentosos instrumentalistas portugueses da actualidade, e uma dupla que nos faz sentir privilegiados por pertencermos à mesma faixa de existência e por nos ser permitido assistir à sua genialidade ao vivo. E perante aquilo que parece ser chupismo, respondemos com a mestria com que se mexem e trabalham Filho da Mãe e Ricardo Martins, guitarra virtuosa e melódica que se interliga com a corpulenta e convulsionante bateria, numa emocionante dança de olhos fechados que ora os mostra complementarem-se, ora os faz confrontar-se numa espécie de competição saudável. Tormenta é afinal uma delícia de ouvir, um improviso delineado com cuidado por dois artistas que extravasam os instrumentos que tocam ao limite que este noise melódico e experimental, muito próprio, lhes permite.
Ainda não se ouviram as últimas notas quando um tema estranhamente familiar se faz ouvir lá ao longe, no palco principal. Voltamos aos tempos de adolescente e de ávidos acompanhantes da fantochada wrestling para reconhecer o tema do saudoso John Cena, “My Time is Now”, lançado de forma gratuita para acompanhar a entrada dos Capitão Fausto. Motivo que iria afinal acompanhar todo o concerto dos portugueses.
Olhamos para este herói de nome modesto com uma perplexidade a que não conseguimos adicionar sentido. Sentimo-nos elementos estranhos de uma festa para a qual não fomos convidados, sem entender minimamente o apelo daquele que parece ser simplesmente um grupo de amigos a ensaiar músicas na garagem de forma descomprometida e sem levar nada a sério, não muito diferentes de outros miúdos que fomos conhecendo ao longo da nossa juventude, e a quem não prometeríamos sucesso algum dali para a frente. As músicas oscilam entre os outtakes de um genérico de um qualquer programa televisivo de início de noite dos anos noventa, e um lo-fi desajeitado e frágil, ainda que desenhado numa linha com certeza intencional. As letras têm piada, isso é certo, mas perdem-se no jeito gravosamente gozão e meio nasalado como são cantadas. Encolhemos os ombros perante uma parede de gente a cantarolá-las em uníssono com o vocalista, aceitamos coloca-los na mesma caixa de uma Capicua ou umas Pega-Monstro, e seguimos com a nossa vida, esperando não ter de voltar a ouvi-los sóbrios tão cedo.
Colocamos o nosso capacete de odiadores de lado para nos encontrarmos com os russos Motorama no palco secundário, percursores do pós-punk dos inevitáveis Joy Division, e a espaços assustadoramente parecidos com os ingleses, ainda que com uma índole claramente adaptada aos dias de hoje, incluindo elementos de um indie mexido e descontraído pelo meio da ressonância. De maneirismos rígidos, posturas desequilibradas e faces fechadas, os soviéticos acabam por conquistar o público ao deixarem que a música fale por eles, ao que a audiência responde com bonitas demonstrações de baile e ovação.
Da Rússia para a Suécia, e de um ruído espesso para a simplicidade orgânica da guitarra, recebemos o homem mais alto do planeta, que viríamos a descobrir ter afinal apenas 1,70m. O que quererá dizer que somos todos mais pequenos do que julgámos. Kristian Mattson é The Tallest Man on Earth, o energético petiz que se desdobra em palco para o ocupar todo com a sua presença contagiante e música inebriante. Sempre bastante comunicativo e positivo para com o público, este notoriamente em menor número que nos dias anteriores, e falando numa pronúncia americana sulista carregada, a mesma com que canta, Mattson faz-se acompanhar de uma banda que enche as suas cordas de um corpo demasiado. O seu folk intimista, polvilhado pelo sentimento e pela frontalidade, quer-se tão despido quanto possível, e nem o ambiente de festival o evitou; o cantautor dispensa a banda durante grande parte do concerto para se entreligar com o público, transbordando a emoção de cada nota por cada atento audiente, qual um jovem Dylan. Visivelmente emocionado com a ligação estabelecida, o sueco entrega-se aos portugueses e parece não querer parar nunca de tocar, prometendo voltar em breve ao nosso bonito recanto.
Os chatinhos e eternamente ecoantes e indolentes Cigarrettes After Sex liquidificam-se lá ao longe, baixando o ritmo vivido até aqui para valores de sedução e ternura que embala casais e românticos. O tom femíneo de um prolongado desejo que parece nunca se materializar peca pela falta de um ‘gancho’ que nos retire desta emaciação, deste embaciar inquietante da existência, vulgo purgatório alimentado a tranquilizante, celebrizado pela muito falada “Affection”, afinal música única que se soube cantarolar no público. Piada geral foi o acender de cigarros no fim do concerto, embora seja do conhecimento geral que fumar é merda.
A noite torna-se bem mais interessante com os Portugal. The Man, vulgo híbrido sonoro e turbilhão de energia que assolou o anfiteatro natural à beira-rio plantado, e por esta altura registando a enchente possível. Competentes instrumentalistas, os norte-americanos contaram com um apoio extremo de um público que lhes sabia cada acorde e cada letra para os fazer ecoar na arena. Entre um par de baladas tocadas de forma estranhamente frenética, de onde sobressaiu uma cover da saudosa “Don’t Look Back In Anger” dos britânicos Oasis – que diga-se de passagem, nunca pensámos vir a ser celebrada entre moshpits e crowdsurfs, mas sendo essa a demanda de tantos grupos de festivaleiros durante todo o festival, e em especial neste último suspiro de Coura, nada mais a sair deste fosso nos pode surpreender, nem os animais de pelúcia ou as figuras vestidas de animal, nem os totens humanos com três pessoas em cima umas das outras –, e afiados crescendos rítmicos apoiados em guitarras desgarradas que nos balançam animadamente, a banda parece querer alcançar todas as influências que conseguirem.
Lá atrás, as ilustrações alinhavadas por John Gourley ganham vida através de animações que tornam o psicadelismo dos desenhos ainda mais arrepiantes. E de alguma forma, não os conseguimos dissociar da voz harmoniosa e afinada do vocalista, afinal o elemento que melhor une este vórtice; existem ritmos pop altamente electrónicos, seguidos imediatamente por agradáveis dedilhares que nos revelam um indie jovial e de gancho fácil, para logo serem explodidos com demarcações de posição agressivos a roçar o punk e o prog. E ainda que tão diferentes, as músicas pertencem todas a um campo comum, construindo uma atmosfera leve e etérea de desapego, que apenas a voz e o ocasional rasgo instrumental vem fazer tremer de forma saudável, para deleite de um público afecto e ansioso por fazer daquele um concerto maior do que foi. “Obrigado, Portugal, o país”, agradecem-nos de saída, quase tão desgastados da “porrada” quanto nós.
Não haverá no entanto pior forma de terminar um festival onde tanto aconteceu do que com CHVRCHΞS, a menos que a intenção seja mesmo a de fazer afugentar pessoas do recinto. Resultou com esta redacção, que não resistiu aos tremores impostos pela synth pop pouco dançável e arrisco dizer ainda menos suportável dos escoceses, apesar da vocalista Lauren Mayberry se mostrar bem mais confortável em palco que na edição de há dois anos atrás, demonstrando uma boa energia e presença de palco esforçada. Pena que a sonoridade pouco ou nada tenha mudado, piorando até com o adicionar de efeitos pesados e agravantes, arrastando público para fora da colina outrora verdejante, e em direcção aos afters, onde os suecos góticos Lust for Youth embalarão a entrada de um set de ritmo alto e tropical de Matias Aguayo, e às saídas do recinto. E na névoa da madrugada que se torna manhã, abraçamos novos e velhos amigos e esta terra que nos acolhe sempre desta forma calorosa e que será sempre um privilegiado retiro onde melhor se conjugam as vivências e a música, até quando esta promete faltar. E apesar da pouca energia para a viagem, voltamos a casa de coração cheio.