Desde há muito tempo que a chegada de Agosto, para além da característica onda de calor e da invariável peregrinação das massas para os Algarves e demais paraísos tropicais da sobrelotação deste mundo, marca também a aproximação de um dos últimos e verdadeiros santuários da música e do escape à rotina. Mais que um simples festival de verão, o agora Vodafone Paredes de Coura demarcou-se do restante panorama ao oferecer ao seu público um verdadeiro retiro natural e espiritual, que une ano após ano à pacatez rural portuguesa e à beleza selvagem da natureza, um cartaz musical refinado.
Por que outra razão haveríamos nós de percorrer centenas de milhar de quilómetros, por entre variados e literais carreiros de bois tentando evitar portagens, o trilhado caminho até um dos pontos mais a norte do país, desde a nossa longínqua e deveras urbana capital, que não fosse pela fuga ao ar sufocante da cidade, às apressadas passadas entre transportes públicos, ao ameaçador olhar daquele chefe de departamento que conta os nossos dias desde que chegámos à empresa onde nos custa tanto trabalhar, ou ao professor que debasta linguagem de engenharia sem que nos entre uma palavra do seu léxico.
Chegados à vila, somos recebidos pelos sorrisos e cumprimentos dos habitantes que se juntam nos cafés, nas esplanadas e nas varandas a receber os festivaleiros, já habituados ao rebuliço a esta altura do ano. Nenhum deles se atreve a mexer no carro estes dias, receando perder o lugar de estacionamento em frente de casa. Preferem o exercício físico e a mudança de cenário, da habitual tranquilidade que apenas o vento se atreve a interromper, agitando as árvores e os montes, para uma miríade de tendas e carros que se estende a partir do rio e margem acima, perdendo a conta à quantidade de lona e infraestruturas. Há gente aqui há pelo menos uma semana, talvez mais, tamanha a dedicação à peregrinação.
É terça-feira, dia 16, e o festival apenas começa de forma oficial no dia de amanhã. No entanto, não falta gente à nossa volta. Subimos à vila para matar saudades, para abraçar pessoas que só vemos por esta altura e para beber aquele fino que sabe tanto melhor quanto mais alto seja bebido, para assistir à sempre energética actuação dos Quelle Dead Gazelle e para tomar de assalto um dos dois ginásios de Pokémon que existem. Entre expectativas, ninguém as tem demasiado altas. Toda a gente quer ver, sem surpresa, os nova-iorquinos LCD Soundsystem, afinal os únicos cabeças de cartaz do festival. A contratação mais alta de sempre obrigou claramente a um reequilíbrio do cartaz, apostando na cautelosa escolha de nomes que já haviam confirmado credenciais neste mesmo certame, e em outros com um impacto relativo. Comenta-se entre dentes que o resultado é fraco, mas olhamos desconfiados para a afirmação, achando que Paredes de Coura promete (sempre) mais do que aquilo que se conta.
A manhã de quarta-feira, 17 de Agosto, parecia não querer acontecer, e pelo barulho ainda parece madrugada, mas já o sol vai alto quando abrimos os olhos. Os sons incaracterísticos surgem desde a praia fluvial e misturam guitarras acústicas de acordes soltos, vozes de chuveiro e elétrodos ecoantes vindos de um qualquer megafone, o canto do galo local, e nunca pararam durante toda a noite. Um festival também é os seus barulhos, as suas gentes, a ininterrupta vida que invade as margens do Rio Coura e se mistura com a sua fauna, nos gritos de meninas em apuros com esta aranha ou aquele sapo, e com a sua flora, nos deslizes colinas abaixo de gente que adormeceu três metros acima de onde acordou.
Por esta altura ninguém se lembra do casal que celebrou o seu amor na companhia da descendente ali mesmo, naquela relva onde dois espanhóis se rebolam em redor de uma bola. Por ora, torna-se deveras mais importante admirar a panóplia de biquínis que se misturam com os sacos de cama de gente que não chegou a atravessar a ponte para o parque de campismo, os tão clássicos saltos na rampa de cu para o rio, de fazer inveja a qualquer atleta no Rio de Janeiro, o postal de quem consegue um lugar no concorrido baloiço, neste eterno deslizar do dia e do sol, enquanto o há.
O dia de hoje é pretexto disto mesmo, aquecimento. O primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura permite-nos sempre redescobrir o recinto como se da primeira vez se tratasse – e é sempre tão deslumbrante como se assim fosse. Ainda na entrada a organização convida-nos a “começar a sonhar”, com a frase iluminada a pairar sobre as nossas cabeças como um genérico de um filme; e eis-nos encarando enfim as colinas verdejantes que desaguam junto ao rio, no Palco Vodafone, cenário solarengo e fresco ladeado pela imponente vegetação, e que nos engole e ao mesmo tempo nos faz sentir tão em casa. Quase que valeu a pena a viagem apenas pelos dois minutos que nos demoramos a sentir tudo ali.
Sobre a relva correm imensos e pequenos pés, de crianças que se passeiam e brincam com camisolas de cores garridas, fazendo levantar tantos e pequenos bicharocos na ainda grande e verde relva por desbravar. Daí a apenas alguns minutos, vemo-los subir ao palco e assumir posição de coro, formando com jovens apenas um pouco mais velhos e acompanhados dos mais variados instrumentos os Coura All Stars, grupo de jovens locais a demonstrar que nem só neste curto espaço de tempo se vive a música na vila. Este é um acto dos WE TRUST, de um saudoso e bastante urbano em palco André Tentúgal, que desde Abril se desdobraram em ensaios e preparações em Paredes de Coura para tornar este espectáculo possível. E tem tanto de ambicioso como de bonito; as composições do disco Everyday Heroes, intencionalmente virado para uma acústica epopeica, ganham uma textura verdadeiramente rica quando tocados com uma orquestra tão bem preparada, e uma grandiosidade palpável quando apoiados de forma tão bem mestrada por um coro deste tamanho, especialmente na épica “We Are The Ones”. A performance fica bastantes furos acima do original, que fica algures entre o previsível e o aborrecido, prezando-se a preparação brilhante e meticulosa da receita. Revelam antes do fim do concerto que este será o seu último, pelo menos por enquanto, mas decerto que os veremos em breve, e sem tristezas, nesta ou naquela sala local.
Menos temos a dizer sobre o duo de pop sintético portuense a que se lhes seguiu, os Best Youth. Na voz lânguida de Catarina Salinas não desbravamos mais que uma monotonia sombria onde há tentativas frouxas de sensualidade e hipnose, que não encontram salvação no deserto de ideias instrumental e previsível que a sustenta. Pouca gente se terá levantado do manto relvado confortável por outro motivo que não o de jantar, sendo que a noite ia caindo e a fome ia apertando.
E o cenário musical não melhorou particularmente com a saída dos mesmos de palco, e a entrada da superbanda Minor Victories. Condenados à síndrome que tende a atacar os grupos cujos membros se juntam após picos de sucesso nas suas bandas originais, nem a experiência adquirida nuns grandes Slowdive ou Mogwai os preparou para o desastroso turbilhão de confusão instrumental que se tornaram. Como se de um enorme lençol se tratasse, puxado por uma ponta ou por outra, mais para o shoegaze ou mais para um pós-rock que quer ser electrizante, mas abrindo buracos e repelões por toda a malha que se tenta construir, em sentido ascendente mas de caminho atribulado e sem alguma vez chegar a lugar algum, apenas remoendo, indecifráveis. Valeu apenas uma dor de cabeça descomunal, apenas curada a prato de uma gulosice qualquer na zona de restauração, que passámos a admirar com especial atenção devido ao bonito uso da madeira por todo o lado, e ao facto de não ser habitada por conteúdo musical tão curto.
Não entremos em alarmismos, no entanto, pois a noite estaria para ser entregue aos Unknown Mortal Orchestra, banda que nem sequer é uma orquestra, mas sim um exemplo da exploração musical. O grupo liderado com mestria pelo neozelandês Ruban Nielson surgiu pela segunda vez no festival, após o concerto carregado de psicadelismo e reverberação de há três anos atrás, reinventando-se em palco da mesma forma que o havia feito em estúdio. Multi-Love é o álbum lançado no ano passado e a marca de uns renovados UMO, caminhando pelos pântanos do sintético rumo a uma sonoridade cada vez mais orgânica, se é que tal faz sentido. E agarrando influências da liberdade jazz e funk, faz dançar sintetizadores e pedais em redor de cordas, teclas e baterias sinuosas e verga as competências que outrora pensávamos de mundos completamente diferentes, derrubando barreiras. E dançamos também nós, desgovernados por esta maresia na qual apenas a voz estridentemente fina nos serve de farol, ferindo-nos os ouvidos de tamanho desafino, mas que importa na construção de um improviso constante e competente?
A noite estaria longe de terminar – a electricidade dos Orelha Negra estava prestes a tomar conta do anfiteatro de Coura. Mestres em cartomancia, Sam the Kid e companhia recolhem as cartas, baralham e voltam a dar, entre mil e um efeitos sobre o groove sufocante que constroem sobre teclados, baixo e bateria, num vórtice musical que nos pega no corpo e nos agita e nos faz perder vergonhas. A noite gélida foi assim salva pela língua portuguesa, e tomada de assalto pelo calor de sonoridades facilmente transitáveis entre o tribalismo hipnotizante, o hip-hop puro ou os samples, de onde sobressaiu para sorriso geral a “Hotline Bling”, de Drake. E mais que desculpa perfeita tiveram aqueles que vieram para o mosh e para serem levados em braços até ao abraço dos seguranças, levantando mais poeira que a própria Ivete Sangalo.