Talvez, por uma vez que seja, a melhor opção seja cortar com os rodeios: a confortabilidade que permitem é de duas naturezas próximas mas ainda assim distintas o suficiente para que possam mexer da mesma forma no lago vasto da mediocridade presunçosa a que ninguém, com letras para dar, está alheio. Algo não dissemelhante ao que é feito neste inusitado prefácio em forma de justificação do entusiasmo talvez excessivo dos parágrafos seguintes.
Assim: o Out.Fest celebrou em 2016 a décima terceira edição com vários componentes conhecidos: música para ser tão pensada como sentida, exercício de exploração sonora constante sem qualquer tipo de constrangimento estilístico e um elevado sentido do que verdadeira curadoria significa. É no significado mais “social” e menos “cultural” que se torna necessário um certo nível de desassombro: o Out.Fest é, nos últimos anos, um murro espetado na cara maquilhada da gentrificação avançada do outro lado da margem. Neste sentido, o Barreiro acaba por ser o melhor exemplo do que poderão ser (num futuro próximo) os arredores de uma zona que só poderá ser definida como uma gigante tourist trap com cada vez menos para oferecer de verdadeiramente interessante na sua zona histórica.
Não se procura sacralizar nada. É, aliás, bastante simples e mundano já que durante quatro dias respira-se de forma mais natural e leve nesta espécie de ilha.
Dia 6
O Velvet Be Jazz Club e a Escola de Jazz do Barreiro acolheram, como de costume, o primeiro dia dedicado à forma mais exploratória do Jazz.
Foi no característico clube que Agustí Fernandez arrancou o festival com uma actuação a solo. O pianista espanhol desconstruiu o que é expectável do som de um piano durante três quartos de hora, sem nunca perder um inquietante sentido de continuidade pese embora as diferentes técnicas empregadas e as pausas inevitáveis para mudar as ferramentas de tortura. O duplo sentido da solidão performativa (a solo; um solo) foi detalhe da maior relevância nomeadamente quando em rasgos de fúria as teclas iam servindo de pedras atiradas a qualquer tentativa de organização sonora que dali pudesse ser inferida.
A mudança para o andar de cima trouxe um pouco mais espaço em relação ao claustrofóbico Be Jazz mas o alívio ficou-se por aqui. No salão da Escola de Jazz, o percussionista Lê Quan Ninh foi caminhando por cada milímetro de pele do timbalão que dominava o palco. Se houve muito espaço para a mais descontrolada (embora só na aparência) experimentação, alguns dos momentos altos foram quando o francês desencantava sons gentis de objectos que não foram desenhados para tal efeito. Há uma qualidade quase ambiental que deriva em boa medida de uma gestão de silêncios, tão importante como qualquer “som”.
A noite chegaria ao fim com um quarteto especialmente reunido para o Out.Fest, uma espécie de dream team feita máquina free jazz: Jamal Moss (electrónica), Evan Parker (saxofone), Orphy Robinson (vibrafone) e Yaw Tembé (trompete). A formação improvisada deixava antever um concerto com semelhante espírito sonoro, o que naturalmente veio a acontecer. Se o homem por detrás de Hieroglyphic Being era a carta fora do baralho, a verdade é que a presença de Moss se tornou no principal trunfo da experiência: criando espaço onde geralmente há silêncio e envolvendo o concerto numa chuva de urbanidade não raras vezes tocante. Neste último aspecto foi essencial a colaboração de Robinson que se destacou não só pelo virtuosismo e sentido rítmico, mas também pelas inúmeras dobragens que foi fazendo à camada electrónica que ia sendo lentamente construída. Com tamanho espaço para preencher, foi quase natural que Evan Parker e Yaw Tembé fossem tomando conta da pequena sala, com especial destaque para a subtil mas incisiva presença do trompetista. O concerto acabou por ter dois actos e foi já com uma sala bem mais despida que o quarteto enveredou na mais bem conseguida secção da viagem.
Dia 7
O segundo dia do Out.Fest arrancava com um dos nomes mais estabelecidos do cartaz: Experimental Audio Research de Peter Kember. Se a referência a Spacemen 3 como âncora da carreira do britânico é inevitável, a verdade é que E.A.R. é já de si um nome de enorme respeito pela carreira com mais de uma vintena de anos e pelo constante trilhar de caminhos únicos na música experimental. A expectativa manteve-se bem para além do início do concerto uma vez que os drones iniciais foram-se prolongando numa falsa permanência que foi sendo substituída por loops cada vez mais densos e, como não poderia deixar de ser, espaciais. O concerto passou, então, de uma sensação fria e distante para temperaturas bem mais amenas, com uma suavidade inebriante só ao alcance de um mestre. A falta de palavras adensou profundamente a comunicação, algo que só acontece quando a linguagem recua a um íntimo certamente mais difícil de atingir mas bastante mais honesto. Foi com uma performance tão inolvidável como rara que Peter Kember marcou o Out.Fest.
Talvez pela diferença radical de sofisticação entre o primeiro e o segundo acto no AMAC, as palavras para com a jovem Klein não possam ser senão de uma desconfiança considerável. Se a desconstrução Pop tem os seus momentos de interesse, a fronteira que separa esse exercício de se entrar puramente no domínio do mau gosto é ténue e foi cruzada com frequência. Se os desvarios “glitchy” foram sempre apreciáveis, a performance vocal alternou entre o interessante e algo que só pode ser perfeitamente descrito como “troll”, o que por si só não encerra nada de negativo mas convém que seja bem feito. A juventude poderá justificar alguns dos problemas mais notórios da nigeriana mas para já ainda foi só uma oportunidade perdida.
Se a juventude marcava o momento intermédio do segundo dia, o mesmo não se pode dizer das três figuras incontornáveis do jazz mais desafiador das últimas décadas. Em palco o trio Evan Parker, Barry Guy e Paul Lytton, respectivamente saxofone, contra-baixo e bateria. Haveria muito a dizer sobre a espantosa técnica de Lytton, criador de ilusão de óptica que trocava braços por incontáveis tentáculos; a excêntrica criatividade de Barry Guy, num germinar sem fim de sons contra-natura e harmoniosos em igual medida; ou ainda a mestria algo escondida de Parker. No entanto, importa sobretudo salientar a capacidade de quebrar um dos principais mitos sobre um tipo de expressão sonora que pela sua natural impenetrabilidade é de difícil acesso. A ideia que o free jazz é “todo igual” não resistiria tendo em conta a lição dada no AMAC. Se é verdade que as sequências frenéticas dão a habitual ideia de caos, também foi possível discernir perfeitamente os movimentos que de forma instintiva vão surgindo na dinâmica do trio: sem atropelos, sem falhas, simplesmente uma máquina bem oleada que transportou o Out.Fest ao seu ponto mais alto até então.
Dia 8
Se os dois primeiros dias do Out.Fest tiveram (e têm habitualmente, diga-se de passagem) uma atmosfera algo introspectiva a reservada, o Sábado na ADAO (Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios) deixava antever uma mudança de registo substancial no tipo de propostas.
Com dois projectos a tocar em permanência a atenção teria que ser obrigatoriamente dividida por um dos quatro palcos ou mesmo por uma das várias salas com obras expostas na ADAO. Assim, o turbilhão iniciou-se com Les Graciés e Polido, respectivamente no Salão Nobre e na Sala de Jantar. A electrónica cinematográfica e cuidadosamente elaborada dos franceses foi perfeitamente complementada pelo registo mais dançável (embora a espaços ambiental) do português, pelo que a opção de percorrer o corredor pareceu natural.
Tamanha sorte não se voltaria a ter em matéria de dispersão durante os concertos até porque logo a seguir a última adição ao festival estreou o Palco Oficina. O duo constituído por Hans Joachim Irmler (ex-Faust) e Jaki Liebezeit (ex-Can) tinha um peso histórico às costas de proporções gigantes mas a cruz foi transportada com leveza ao som de ritmos tribais, um certo piscar de olho ao Krautrock e sintetizadores desgovernados a ajudarem os corpos a mexer. O único detalhe a apontar terá sido mesmo a duração, algo curta para o que podia ser expectável, mas cumprindo na íntegra as expectativas.
A sequência lendária só não imediata porque antes de Acid Mothers Temple, Van Ayres transformou a Sala Grande num pesadelo delirante e surpreendente, digno de nota num dia tão recheado. No entanto, eram mesmo os japoneses que prendiam todas as atenções e como consequência o Palco Oficina transformou-se numa miragem que se inferia através do som uma vez que muito pouco se via. Pouco interessou logo que se encetou uma viagem por um catálogo longuíssimo e marcada por inúmeras transformações (de designação, de som, de imagem, etc.) do colectivo fundado por Kawabata Makoto. Se o primeiro impacto foi sobretudo ruidoso, a partir daí o psicadelismo instalou-se para ficar numa descarga alucinada e sempre a acelerar. Houve tempo para a habitual referência a Sabbath, para passar por “Pink Lady Lemonade” e até com algumas passagens de Gong. Quando o empenhamento a estruturas mais tradicionais não era pleno era possível discernir na parede de som os disparos de uma guitarra mergulhada em phaser que conferem aquela áurea espacial típica do colectivo nipónico. No fundo fez-se Acid Mothers Temple e nunca pareceu fazer tanto sentido como em terras barreirenses.
Devido ao prolongamento do concerto de AMT já não houve tempo para passar por Tropa Macaca no andar de cima e apenas deu para perceber que a Sala Grande foi transformada numa rave pelo também japonês Foodman. A electrónica, de resto, dominaria o que restava da noite: Hieroglyphic Being proporcionou um momento de dançante mas ao mesmo tempo algo contemplativo, epílogo de fumos e suores que foram sido “consumidos” durante o dia. Neste regresso ao registo mais habitual (após a aparição do primeiro dia), Jamal Moss embalou os resistentes com a mistura de house e tecnho que o têm afamado nos últimos anos. Até a linearidade algo excessiva acabou por funcionar simbolicamente: estava mesmo a acabar.
O dia seguinte ainda contou com a presença de André Gonçalves no acolhedor Convento da Madre de Deus de Verderena, um espaço também já utilizado no passado pelo festival. Com uma peculiar “organização” em termos de som, boa parte do interesse estava em perceber a dinâmica entre os o que soava na capela e as colunas estrategicamente colocadas na parte de fora da porta, criando um contraste substancial a cada transição de dentro para fora (ou vice-versa). A experiência envolvente e fantasmagórica foi uma despedida adequada na medida em que exigiu o mesmo esforço mental e sensorial que torna o Out.Fest um festival único. Foi assim outra vez.