O OUT.FEST comemorou em 2015 a décima segunda edição num exemplo de persistência que tem tanto de raro como precioso. O autodenominado festival internacional de música exploratória do Barreiro é, no entanto, bem mais do que um nome a elogiar pela durabilidade uma vez que ano após ano o intuito exploratório se vai apurando: abandonando caminhos e enveredando por outros num esforço de não-conformismo que quase sempre resulta em momentos verdadeiramente inéditos e em actuações de nomes que acabam mais cedo ou mais tarde por criar algum eco após a passagem por esta “quasi ilha” da margem sul. Este será porventura o maios elogio a fazer: o passado do OUT.FEST não carrega os sentidos nefastos que um legado pesado e rico tradicionalmente confere mas antes é uma fotografia única do melhor que se faz a cada momento em matéria de música desafiadora de mentes e espíritos.
Dia 8
Como já vem sendo habitual há uns anos, o festival iniciou-se no Be Jazz desta feita dividindo as honras de abertura com outro espaço no mesmo edifício, a Escola de Jazz do Barreiro. Não será difícil adivinhar qual a tónica dominante do primeiro dia sendo que a heterogeneidade das três propostas acaba por ser um belo tributo à diversidade do género.
O duo Akira Sakata & Giovanni Di Domenico abriu as hostilidades com o veterano japonês a fustigar as fronteiras do possível em matéria de sopro, alternando entre o saxofone, o clarinete e até passagens que se assemelhavam a canto difónico. Tudo isto suportado pela discreta mas cativante performance do italiano. A colaboração já tinha dado frutos com o álbum “Iruman” mas embora essa fosse a base, a verdade é que o diálogo se foi transportando ao sabor de um exercício de improvisação que deu o mote para o resto da noite.
O nome que naturalmente mais despertava a atenção no cartaz do primeiro dia de festival era sem dúvida o de Matana Roberts. Aclamada pela crítica especializada enquanto compositora e saxofonista, a aventura de “COIN COIN” a ser lançada desde 2011 pela Constellation Records (sim, essa mesmo…) consagrou a norte-americana como uma das mais inovadoras sonoplastas dos últimos anos no terreno no Jazz (e não só). Se os dois primeiros trabalhos enfatizavam a vertente de saxofonista vulcânica e imprevisível, o terceiro capítulo é uma viagem pelas raízes afro-americanas muito mais dado a longas paisagens sonoras que se vão desenhando por entre loops e frases repetidas. Um retrato fiel ao que se passou na Escola de Jazz, embora com uma tendência bem vincada pela própria desde início: «This is an experiment. This is an improvisation.». Ao som de frases repetidas à exaustão num e com um pano de fundo sonoro mudado subtilmente, o saxofone foi deixado quase sempre para segundo plano vislumbrando-se apenas a espaços. Se é verdade que a performance em si é atípica mesmo para quem caminha em trilhos tortos e desnivelados, o risco encaixa perfeitamente na proposta exploratória que converge tanto no festival como na música de Roberts. A introspecção sobrepôs-se à fúria e a viagem triunfou sobre a vertigem, o que subalternizando o virtuosismo resultou até numa perspectiva mais singular em relação ao trabalho de Matana.
Tal como o tempo instável que se fez sentir em quase todos os dias do festival, também a acalmia foi de pouca dura. A tempestade sonora provocada pelo trio Miguel Mira, Pedro Sousa & Afonso Simões. Mais reconhecível pelo trabalho em Gala Drop, Afonso Simões não destoou, ritmando a máquina que ia trucidando o Be Jazz e que dava pelo nome de Pedro Sousa. A actuação teve na visceralidade a sua maior força e encerrou em fúria o primeiro dia de OUT.FEST 2015.
Dia 9
Se há algo que acompanha a exploração musical feita durante o festival é a constante descoberta de novos espaços (todos no Barreiro) onde o evento se reinventa quase todos os anos. A afirmação ganha redobrado peso quando se fala no imponente e belo Museu Industrial da Baía do Tejo onde se recorda o passado industrial da cidade.
Foi precisamente no enfiamento da Rua do Ácido Sulfúrico que os AMM abriram caminho para uma viagem que de alguma forma nunca foi interrompida nos últimos cinquenta anos. É verdade que – acompanhado pelo pianista de longa data John Tilbury – resta apenas o fundador Eddie Prévost da formação original e por seguinte apenas haveria acesso ao trabalho mais minimalista do recheadíssimo catálogo de AMM. Claro que este “apenas” seria uma verdadeira lição de gestão de silêncios por entre um gongo massacrado, a tarola sobrecarregada e um gigantesco bombo empilhado com pratos, as notas gentis do piano foram mantendo a actuação “ancorada” embora a anos-luz de conferir qualquer estrutura a tão peculiar deambulação. A acústica arrepiante do espaço fez o resto numa performance que se valeu tanto pela mestria dos sons só aparentemente simples como pela notável gestão de silêncios.
Bem menos tranquila foi a actuação do quarteto David Maranha, Helena Espvall, Ricardo Jacinto & Norberto Lobo. Os drones hipnóticos arquitectados por David Maranha foram o ponto de destaque mais positivo numa actuação que pese embora tenha tido um certo magnetismo foi sempre parecendo algo desconexa nomeadamente quando a guitarra de Norberto Lobo ganhava uma preponderância excessiva e que descentralizava as atenções da parede de som produzida pelo órgão e pelo duo de violoncelistas.
Contrastando com o clima quente dominado pelos vermelhos e sons gentis, o finlandês Sasu Ripatti apresentava-se com um dos seus muitos pseudónimos: Vladislav Delay. Regressado aos terrenos Ambient após uma exploração intensa e multifacetada em várias áreas da música electrónica, a proposta do mais recente “Visa” lançado no ano passado deixava antever uma performance onde as ondas distorcidas predominariam por entre momentos de algum alívio rítmico. O que surpreendeu foi a intensidade e a – diga-se sem pejo – barulheira infernal que se abateu no Museu Industrial. Todos os momentos de relativa acalmia iam sendo substituídos por crescendos de cacofonia que iam bebendo ao mais agreste dos mundos industriais. A apoteose final e o súbito silenciar das máquinas provocaram emersão abrupta do oceano ruidoso criado pelo finlandês. Nesse exacto momento foi possível perceber com uma precisão admirável exactamente o quão profundo é o mundo de Ripatti.
Dia 10
No penúltimo dia estavam prometidas várias novidades ao nível da forma no que ao OUT.FEST concerne. Em primeiro lugar um novo espaço em estreia – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios e, em segundo lugar, a sempre arriscada aposta na sobreposição de actuações que haveria de provocar três concertos em simultâneo a meio da noite.
O espaço da ADAO (excelente sigla, refira-se…) dividiu-se em nada mais nada menos do que cinco “palcos”. Mais: várias salas com trabalhos que têm sido desenvolvidos no âmbito do trabalho da associação davam ainda mais largura e dimensão aos caos criativo que se haveria de instalar naquele edifício virado para a linha ferroviária do Barreiro.
Se é verdade que logo a abrir as sobreposições começaram a criar dores de cabeça, a verdade é que a sensação de happening foi uma aposta ganha logo à partida. Coube a Black Zone Myth Chant abrir o Salão Nobre com uma sessão de psicadelismo improvisado pincelado por batidas tribais e a introduzir a noite que se haveria de tornar bem quente. Contrastando com isto a dupla Rabu Mazda & Van Ayres visitavam o álbum de estreia – “Acacia” – e introduziam os tons frios de uma electrónica contemplativa e distante evocando tribos ancestrais da Antártica na Sala de Jantar. O quente e o frio iam, à sua distinta maneira, introduzindo a noite longa.
Todavia, logo à segunda chamada as cerimónias e delicadezas foram postas de lado. Os nova-iorquinos Zs arrancaram para uma viagem verdadeiramente violenta tendo comandados pelo saxofonista fundador Sam Hillmer que foi mal tratando a audiência com explosões violentas logo acompanhadas pela guitarra deambulante de Patrick Higgins e Greg Fox na bateria. Talvez o último nome soe familiar mas desta vez era mesmo uma banda a sério aquela que abriu o Palco Oficina e provocou os primeiros momentos de êxtase da noite nomeadamente quando Fox explodia em blast beats no limiar do possível e o secular edifício da ADAO era abanado por todos os lados.
O ritmo não abrandava e se foi impossível abandonar os americanos até ao final, por essa altura já Low Jack estreava a Sala Grande com uma autêntica evisceração dos padrões techno. O francês não deu descanso a ouvidos ainda condoídos da tareia anterior e foi abrindo caminho entre ritmos austeros de clara influência industrial mas sempre dançáveis. Por seu turno Rodrigo Cotrim – na Sala Pequena – ia incutindo semelhante impulso locomotor embora de forma bem mais suave e relaxada.
A pequena multidão que ia engrossando o último dia de festival concentrou-se em grande parte na actuação de Gala Drop mas a viagem prometida estava em cima com o regresso de Peter Brötzmann desta feita com o vibrafonista Jason Adasiewicz. Menos caótica que a aparição do ano passado da lenda alemã mas sempre com o mesmo nível de intensidade e um timbre que não deixa de surpreender e encantar passados tantos anos. O Salão Nobre apinhou-se junto ao duo para absorver décadas de sabedoria transformadas em momento frágil e precioso que constituiu um dos momentos altos da noite.
Na fase mais dura da noite, Filipe Felizardo banhou a distorção a Sala de Jantar ao mesmo tempo que Bleiddwn palmilhava mundos digitais e de encanto distante de onde só foi possível sair com a realidade nua e quase cruel de Russell Haswell. O noise perturbador reinou numa actuação niilista e, porque não dizê-lo, feia. A exploração dos limites do ruído foi a tendência geral dum embate curto e poderoso. Ainda se clamou por mais volume mas o que havia furou tímpanos e desequilibrou o suficiente para que a reputação do britânico como terrível oráculo de apocalipses permanecesse intacta.
Foi até com algum alívio que chegava a hora do regresso a Portugal de Golden Teacher. No espaço mais amplo do Palco Oficina os corpos amontoaram-se e foram-se movendo à medida que a banda de “Party People / Love” ia avançando numa actuação climática e bem típica dos últimos momentos de OUT.FEST. A ausência de Cassie Oji foi compensada com a energia adictivada de Charles Lavenac que não parou de incendiar os ânimos com os temas de “Sauchiehall Enthrall” em particular destaque.
No entanto nem só de festa e leveza de revestia a hora tardia em que os escoceses animavam o piso inferior da ADAO. Cá em cima os renovados Caveira iam devastando o Salão Nobre com o único sobrevivente da formação original – Pedro Gomes na guitarra. Um quarteto que se foi revezando em provas de virtuosismo selvático e a espaços aterrador.
Se a proposta de Niagara era regressar às areias movediças da dança, a continuação lógica da destruição causada pelo terramoto Caveira seria sem dúvida Älforjs. Trio criado aquando da realização do último OUT.FEST, foi inevitável a sensação de círculo completo na actuação. Afinal tratava-se de um regresso a um ponto de partida que não só se integrava na perfeição em toda a proposta do evento como provocou uma autêntica avalanche de experimentalismo que dificilmente teria melhor campo de expressão do que a montra barreirense.
Dia 11
De forma quase terapêutica da organização decidiu que uma sessão de relaxamento se impunha. As honras couberam ao viajante Laraaji que cumpriu os propósitos na perfeição. A chuva ditou uma mudança de local e o regresso à Escola de Jazz mas a longa e meditativa deambulação de “The Peace Garden” evaporou qualquer sinal de exterioridade do belo salão.
Foi no chão da Escola de Jazz que a realização do fim de mais um OUT.FEST foi gentilmente sugerida ao espírito durante quase hora e meia. O conteúdo da afirmação é bem mais cruel do que a forma através do qual foi introduzido mas há uma certa tranquilidade que permanece com a certeza de que o próximo ano trará, não iguais, mas igualmente desafiantes propostas.