Adolfo Luxúria Canibal disse uma vez que assistir a um concerto sentado é uma bênção. Em parte, tenho que concordar com ele. Primeiro, porque é o Adolfo Luxúria Canibal. Depois, porque ao estarmos sentados, em posição de relaxe e admiração, estamos totalmente unos com nós mesmos e capazes de beber cada palavra, cada retícula de luz, cada fragmento de som. E, apesar da imagem cómica e quase piadética, se fizermos um esforço conseguimos dançar quase como se estivéssemos em pé. Tudo isto para dizer “sim senhora, o CCB foi a escolha ideal para a comunhão ministrada pelos Orelha Negra” – sendo que a partir de hoje também aceito “os detentores máximos do groove em Portugal” para quando se referirem a eles.

Quem já perdeu alguns minutos da sua vida a ouvir aquilo a que se convencionou chamar de “música negra”, sabe que esta está repleta de sentimentos apeláveis ao mais inapelável dos homens. Sabe, igualmente, que esta é espiritual e ecuménica pela forma como toca e nos toca, pelo que não é de espantar que nem quinze minutos tinham passado do início do concerto e já havia quem lutasse contra a bênção de estar sentado e se atirasse desprendido à dança e ao movimento do corpo.

Porquê? Porque M.I.R.I.A.M., Blessed ou Since You’ve Been Gonea isso obrigam. Carregada de honestidade e simplicidade – que em termos de composição é mera ilusão, dada a quantidade de referências que se cruzam e completam –, a música da Orelha propaga-se facilmente, cheia de uma etereidade densa que se cola à pele e insiste em não mais nos abandonar. Nós agradecemos e aceitamos, primeiro com os olhos fechados e depois arregalados com o espectáculo de luz em perfeita sinestesia com samples, bateria e guitarra.

Felizmente em 2012 os Orelha Negra continuam iguais a 2011. Com tanto de groove como de fusão, de frenético como de languidez (e sensualidade), esta dose curta mas extenuante de música é sentida como se uma experiência religiosa se tratasse. Daquelas em que quando atingimos o pico somos capazes de jurar a pés juntos – ainda que de forma entreolhada – que vislumbrámos algo extra-terreno.

Pensando com a devida distância temporal, física e metafísica, tal fenómeno não é para estranhar: os Orelha são uma entidade cada vez mais forte e una, ainda que para a sua composição obedeça a um retalho peça a peça de identidades resgatadas ao esquecimento e ao desconhecimento.

Em regime de devoção – da Orelha para com outros tempos e do público para com a Orelha – a quebra foi só uma e, em contratempo com o clímax, quando os ânimos se queriam em alta: com novos temas. Francisco Rebelo, senhor da guitarra, liderou a banda por dois temas que talvez por avançarem em terrenos demasiado familiares (ou demasiado alienígenas para a banda), quase piscavam um olho aos Dead Combo. Dois temas que não, ainda assim, não obscurecem aquilo que aí vem. Não, para os Orelha Negra o futuro permanece brilhante, em carne, osso, vinil e sample.

Há quem goste de lhes chamar supergrupo, um rótulo orientador para eventuais desorientados e que, neste caso, é tão desnecessário como inexistente. A menos que vejamos a coisa de outra forma: “super” não pelos elementos, mas por aquilo (de) que (se) fazem.