Uma batida pode dizer muito. Foram em 2012 apelidados como os detentores do groove por cá, aquando da anterior apresentação de material às escuras – também no CCB, relativa ao segundo registo homónimo da banda – e já depois do épico concerto com orquestra no Sudoeste em 2013. Os Orelha Negra são os arquitectos da batida em Portugal. É em palco que sempre o demonstraram. Conquistando espaço pelo som, somente – o que é raro. Porque uma batida não determina: faz-nos imaginar, reflectir, dançar e ficar melancólicos. Um resumo do âmago humano ilustrado na plateia de idade e estilo díspar, moldura humana que fez presente no lotado CCB, neste regresso do quinteto.
Razão também de já terem singrado plateias em palcos semelhantes, como o Cinema São Jorge ou Teatro São Luiz, tanto como em festas académicas e outras ao ar livre, enquanto cabeças de cartaz ou aceleras de after-hours em festivais, com os seus memoráveis medleys, em que fazem uma espécie de DJ set instrumental de temas conhecidos da música rap – recente e antiga. Na noite de sábado um medley novo foi estreado, algo que sucedeu estrategicamente a meio da actuação: ouviu-se “Breathe” de “Fabulous”, inesperado, e o esperado “Don’t Kill My Vibe” de Kendrick Lamar e “Hotline Bling” de Drake; lá para o meio da groovada jam reconhecemos também um sample de Herb Alpert & The Tijuana Brass em “Tresure Of São Miguel”, de 1967, já sobejamente usado no rap de várias escolas.
Os apontamentos sonoros vão da electrónica ao pop rock, do pop moderno ao rock progressivo, passando invariavelmente pelos anos de ouro da soul e do funk. Essencialmente, tudo o que a banda bebe na sua demanda de samples – fragmentos sonoros rebuscados de onde surgem quase todas as canções. O que, neste terceiro registo, evidencia uma viagem às raízes e ao seu fruto que, é como quem diz, ao funk e à soul dos 60s e 70s. E, simultaneamente, ao rap, acompanhado de um encostar aos ambientes difusos da electrónica embrionária, igualmente explorado no seu anterior registo, que muitas vezes andaram de mão dada com a rapaziada que Afrika Bambataa reunia aos fins-de-semana no Bronx.
O álbum futuro que apresentaram será ainda gravado e tem edição prevista para a Primavera. Pareceu-nos que este esqueleto é mais leve que o agitado há quatro anos, ou então simplesmente existiu em algumas das novas faixas uma certa reincidência em velhos vícios de composição, devido às excessivas lembranças de outras faixas suas, com muitos tiques de ritmos de músicas como “Round 4Round” ou “No Ar”, nas tiradas de teclas e vozes, emoções já exploradas em “Saudade” como se fosse uma nova versão. E, em termos de estrutura, a faixa que encerrou, de caótico loop-boom-bap com um scratch de “Shook Ones Part II”, lembra “Viva Ela”. Não obstante, noutra metade das músicas, a banda aposta em notas improváveis na samplagem. Em vez de momentos decifráveis e prontos a cativar, há músicas que nascem de frames aparentemente inacabados e indistintos. Jogam também em ambientes mais caóticos do que o costume, fortes em camadas curtas, e noutros deixam-se ficar na inexistência de samples. Ganha a bateria papel preponderante, sendo notório que é este o instrumento que mais arrisca e relevo tem nesta nova fase da banda, com Fred Ferreira a produzir ritmos complexos e desdobráveis que só normalmente ouvimos em caixas de ritmos.
Resumindo: a bateria compacta, o baixo denso de Francisco Rebelo em quebras rítmicas, samples de vozes e texturas, pinceladas soul do teclado de João Gomes, o scratch que parte e cola as notas na mesa de DJ Cruzfader. Destreza ímpar na execução, como nos habituaram. Fred Ferreira olha para Sam The Kid, o sample muda e o ritmo também, uma nova camada, renovado ambiente, outra época, diferentes visões, muitas histórias… Tudo num loop e à distância de um olhar. Após uma hora, saem os cinco de palco para voltar pouco depois com o cubo de groove de “961919169”, o balanço dos oitentas em “Throwback” e a belíssima soul queen que é “M.I.R.I.A.M”.