Depois de um segundo dia a encher todo o tipo de medidas, o terceiro e último acto do festival no Parque da Cidade do Porto teve um início agridoce – e o caramelo foi todo distribuído por unsGlockenwise que não perdem, de forma alguma, a acidez do humor irónico do niilismo juvenil de quem prefere beber e curtir a ser pretensioso o suficiente para se levar a sério. Levassem-se a sério, e não diriam que era altura de mudar de ares e fazer músicas curtas e divertidas. É para isso que serve o seu garage e foi com ele, com Leeches como mote, que bafejaram um público ainda parco com a dose de boa disposição necessária para aguentar um dia morno.
Nem Manel, nem Roll the Dice, nem Degreaser serviram para desengordurar a louça acumulada no dia anterior, pelo que as atenções, ainda que irmãmente divididas pelo recinto, só mereceram devoção total em Dinosaur Jr. Antes disso, houve a paragem no palco Super Bock com o rock todo ruidoso dos Drones, que se apresentaram embriagados no seu próprio registo, para agrado dos presentes.
Pelo seu lado, J Mascis, sempre bem acompanhado por um Lou Barlou claramente convencido de que o seu baixo era, também, uma guitarra (abençoado seja pelo belo equívoco), pegou na sua Jaguar para depositar uma boa dose de rock sem peneiras em cima de uma audiência que estava francamente sobre-excitada – pelo menos ao ponto de esboçar aquilo que parecia ser um mosh pit. Damian Abraham, dos Fucked Up, surgiria em palco para cantar a cover de Last Rights, Chunks, encerrando a chave de ouro o momento com mais testosterona a passar pelo palco Optimus, precedido pela suada Sludgefeast. A audiência estava sobre-excitada, sim, mas os Dinosaur Jr. fizeram por o merecer.
Los Planetas dariam continuidade ao indie batido e de fórmula gasta dos Manel (afinal não era só um), que sempre se deram ao trabalho de o adornar em catalão. Não há latim a ser utilizado nos castelhanos que já não tenha corrido em tinta sobre N bandas iguais. Poupe-se nas letras, nos PAUS, e siga-se para os Sea and Cake, esses, sim, autores do rock independente mais típico, mas, ainda assim, mais especial que pelo festival passou. Não haveria género que melhor assentasse no conceito do Primavera Sound e ver os norte-americanos reduzidos a um palco ATP – que apesar do grande cartaz não disputava atenções com palcos maiores – em detrimento de projectos como Los Planetas chega a atingir o nível de absurdo.
Não que isso tenha afectado a actuação do quarteto de Chicago, que, por muito que o tempo passe e por muito que a estrutura pareça repetir-se, não consegue deixar de fazer da sua receita pop algo rico em aromas, em psicadelismo e melodia, elevando o fenómeno das suas composições ao inexplicável. Fantasmagóricos, quase vultos em palco, enfrentaram o anfiteatro com a doçura que grassa os anos 90 em sorrisos nostálgicos e fizeram-no como se 2013 fosse, apenas, uma dimensão que não encaixa na sua capacidade de descrever o real. São poucas as bandas que conseguem não soar datadas sem, na verdade, deixarem de o ser. Isto é, os Sea and Cake de sempre são uns Sea and Cake especiais. Únicos. Esses passaram pelo Primavera e rasgaram sorrisos com uma felicidade que não envelhece.
Enquanto os Explosions in the Sky não faziam jus à beleza do seu nome, sem, contudo, entrarem na solução óbvia em que o somatório de “explosão” e “post-rock” resulta, Daughn Gibson, apenas com um baterista a acompanhá-lo, assombrava o palco Pitchfork com falta de luz e um som arrepiante, que seria continuado pelas Savages e com o seu post-punk tão à moda daquilo que os Bauhaus fizeram nos anos 80. As britânicas, felizmente, não se ficaram pela imitação e atribuíram uma dimensão psicotrópica mais proeminente, substituindo a dissonância gritante da guitarra pelo éter dos delays.
A grande surpesa da noite, para estes lados, seriam mesmo os texanos. A fórmula do post-rock tem os dias contados há muito tempo, e a forma como este quarteto (em palco acompanhado por um baixista de sessão) se expressa não se tem renovado com o passar do tempo. Contudo, em concerto, a forma como sussurram as melodias para depois insinuar explosões, mais do que as provocar, contorna com uma beleza e uma simplicidade muito bem geridas a previsibilidade de uma língua morta. Nunca o post-mesopotâmico soaria tão bem quanto com músicas como Yasmin the Light ou Greet Death, julgar-se-ia. Fizeram por provar os calendários errados e não saíram de palco sem deixar um suspiro de grande concerto, carregando, ainda assim, a sina de ter uma audiência que, ao contrário do que se professava, não se mostrava inteirada com a cultura de rock instrumental. Os Explosions in the Sky desenharam com as suas guitarras oito belas peças que encheram o ar de nostalgia – para a generalidade da audiência talvez tenham chegado às várias dezenas, a contar com o número de vezes que as acalmias se perdiam em aplausos. Ficaram a um momento de silêncio da prestação perfeita.
Seguir-se-ia a actuação dos Nurse With Liars, perdão!, dos Nurse With Wound – o lapso é justificado com o maior erro de casting possível, ao sobrepor-se um concerto de uma banda que tem no silêncio e na suavidades da baixa decibelagem o segredo para criar, mais do que música, um ambiente palpável à textura com os irritantemente festivos Liars, que se fizeram ouvir, para sorte de a quem interessava, e para azar dos demais, em todo o recinto. Restava esperar pelo momento mais aguardado da noite, ou seja, pela altura em que o uso de todos os tampões do festival seria justificado no altar do palco Optimus, com o sacerdote Kevin Shields a conduzir um sacrifício de tímpanos massivo. Ou foi isso que venderam – mas a realidade, dura, leva-nos a crer que não se pode acreditar em toda a publicidade.
Não se enganem os precipitados: Shields entrou atrasado como a estrela que é, mas pôs a sua guitarra a soar como os astros, entre o mergulho em reverbs e o abuso das distorções que lhe é tão característico. O que em disco soa a abusado, ao vivo soa a uma perfeição de soberba, onde a agressividade do estúdio se dilui na beleza da melodia. Mais nenhuma guitarra, na simplicidade de um power chord, consegue soar ao rugido de um monstro tão belo quanto os My Bloody Valentine, mas, infelizmente, nenhum concerto de faz de um só instrumento. As músicas dos irlandeses não vivem de uma complexidade de composição que permita a sua dissecação e separação de elementos sem que isso tenha um efeito castrador na obra.
No Parque da Cidade, o elo mais fraco foi a voz – e esta não é uma constatação do óbvio, é o sublinhar de que a voz, ainda que secundária nas músicas dos irlandeses, não está na música dosMy Bloody Valentine por acaso; no Optimus Primavera Sound, não estava, de todo (leia-se, não se ouvia), assim como o som não estava tão alto quanto o prometido (o que me impediu de utilizar os tampões que prometi aos senhores da Ear Peace que ia experimentar. Fica para a próxima, malta! Fiquem atentos). Perdido o Dan Deacon, de quem só se diz maravilhas, restou tentar a redenção pelo sacrilégio com Titus Andronicus, que faziam festa da grossa no palco ATP. De resto, o aquecimento rockeiro e certeiro para mais uma surpresa, esta vinda do Canadá:Fucked Up.
Ver Fucked Up com grades é como pescar com tijolos. A verdade é que Damian Abraham, esse monstro de chão para quem o palco não existe, tem massa suficiente para, com cada tijolada, tirar a água toda do lago e apanhar os peixes à mão, ou seja, fazer três quartos de grande concerto sozinho; o resto coube aos cinco colegas que faziam o punk com pior som do festival. Fosse isso importante, e ninguém teria sido arrebatado com a energia do colectivo hardcore de Toronto, que encheu de felicidade o palco Pitchfork. Abraham, como já ficou claro, aguentou-se em palco cerca de, bem, tempo nenhum e usou as grades como suporte para a sua energia inesgotável, pelo menos quando não invadia a audiência para enrolar o cabo de microfone na cabeça – sim, todas as razões servem para fazer festa num concerto de Fucked Up, mesmo os pormenores de logística.
E nada sendo mais punk do que a sinceridade, gritar em plenos pulmões sobre o quanto gostamos de pessoas e de ser felizes, embora não encaixe naquele protótipo do hardcore chateado, é genuíno no sexteto, pelo menos o suficiente para fazer sentido no seu registo. Foi o adeus de quem já não tinha mais stamina para dispensar em concertos e só desejava ir para a cama. E ficou claro: o Primavera, assim como os Fucked Up, tem mais encanto na hora da despedida.