O segundo dia trouxe um Alive a toda a pompa. Finalmente, o palco principal era, salvo algumas excepções, essencial, e os secundários travestiram-se de R’n’B cabisbaixa, numa alternativa à celebração que inequivocamente (mesmo apesar dos sempre agridoces Depeche Mode nos encherem a boca de uma depressão dançável e glamourosa). Tivemos festival a toda a pompa.

DIIV

O semblante hippie, de trajes soltos e cabelos longos, cai bem nos DIIV. Aconchegados por Oshin, álbum de estreia, há nos nova-iorquinos reverb, toneladas de reverb, metidas num post-punk que transporta a leveza psicadélica dos Real Estate. De palidez anémica, Zachary Cole Smith pediu “antibióticos” à tímida plateia, mas foi ele o anestésico maior, inoculando melodias lo-fi cheias de candura. Criticados nos Estados Unidos pela sua frouxa presença de palco, Lisboa reconheceu aos DIIV robustez suficiente para o aplauso sincero.

Oquestrada

Os Oquestrada, ainda que numa versão mais world e, talvez por isso, ligeiramente mais desafiante que os demasiado óbvios e populistas Deolinda, abriram um palco principal sem velocidade cruzeiro. O arranque foi feito ao ritmo do dedilhado de guitarra, enquanto a gravidade das batidas hip-hop old school dos Jurassic 5 não levantava braços e dobrava joelhos. Ora aquela portuguesidade batida, ora um piscar de olho à América do Sul com umas nuances de “Tico Tico do Fubá”, a banda deu uma sólida demonstração instrumental, ainda assim insuficiente para aquecer os ânimos entusiasmados com ideias mais altas.

Wild Belle

Nasalada, e desmesuradamente alta face aos instrumentos restantes, a voz de Natalie Bergman recorda-nos o tom irritante de Duffy. As melodias dos Wild Belle também não deslumbram: reggae redito e atravessado por um ska meio piroso, onde o saxofone é insuficiente para fazer das malhas de Isles cativantes pedaços musicais. As vestes indie pop, descomplicados adornos para as viagens jamaicanas dos irmãos Bergman, mostraram-se exauridas e nem o sol espreitou para dar ares de Kingston à capital.

How to Dress Well

Os How to Dress Well apresentaram-se como o oximoro da testosterona e, de forma mais irónica, do próprio nome. Maltrapilhos, alheios a estilos, deram um toque de cetim a um lusco-fusco em que se quedaram, com o seu negrume de soul, a contrastar com a alegria que normalmente joga no género. Vestiam nas suas batidas, lentas, e nas suas melodias o despojamento de alegria que não lhes assentava na silhueta e no sorriso de estarem em palco, alegres e entregues a cada momento da sua música. Entre toda a camada electrónica que construía cada estrutura da música e a capacidade vocal de Tom Krell, dançando entre microfones com e sem reverberação, baixaram-se as primeiras cabeças para se sentir a música – ou, para outros, fez-se tempo enquanto a alegria dos Jurassic 5 não assaltava o palco principal.

Jurassic 5

Diametralmente opostos à soturnidade dos Editors e dos Depeche Mode, os Jurassic 5 caíram de paraquedas no principal palco. Caíram bem. Até pelo peso histórico: se à maioria lhes são desconhecidos alguns factos, para outros, minoria ruidosa, foi bem bonito ter adiante o catedrático hip-hop dos californianos. Longe de transparecerem seis anos de ausência – em 2007 decidiram acabar uma carreira de década e meia – o quarteto de MCs ostenta hoje um egrégio profissionalismo, revelado na irreprovável articulação entre si. Flows intactos onde nem uma sílaba é perdoada, beats subjugados à virtude do funk e à mestria old-school da 90s Golden Era, mostraram uns Jurassic 5 por demais dedicados a proporcionar sessenta minutos de boas vibes. Sem tempos mortos – as pausas para respirar foram preenchidas pelos DJs Cut Chemist e Nu Mark em modo circense, apetrechados de caixas de ritmos sui-generis capazes de cuspir o riff de Smoke On The Water, recuperar os Dead Prez e reanimar o Harlem Shake – oOptimus Alive testemunhou uma vultosa performance, que, a cada minuto, foi enchendo o recinto. Lá para o fim, já depois da enorme Freedom Power In Numbers continua a ser O álbum –, o público já era só mãozinhas: palmas, coreografias e acenos vários. Que a aposta no hip-hop em festivais não se quede por aqui.

Rhye

Já os Rhye trocaram o cetim pelo veludo, pelo volumoso veludo, sempre de tons solenemente negros. Era esta a r’n’b que ia servindo a alternativa e ia permitindo os corpos bambolearem-se por outras partes do recinto do festival. A dupla canadiano-dinamarquesa entrou de voz e teclados em riste, como base para uma orgânica inesperada, de baixo, violino, violoncelo e bateria, a compor todo o corpo à volta da de Mike Milosh e do seu timbre efeminado e do Korg,  do sempre belo Korg de Robin Hannibal. Os arranjos, sempre subordinados à expressão da dupla, das suas harmonias vocais e da bateria ponderada na sua falibilidade à tendência electrónica, permitiam reproduzir na perfeição aquilo que é a banda em estúdio, não deixando de revelar uma faceta inesperada — a que nos diz que existem, mais do que se processam. A forma como se apresentaram, apesar de ter dado uma dinâmica de concerto e permitido a entrega da actuação despojada de computadores, pecou, no entanto, precisamente pela falta de largas na imaginação, no fim. Se saíram, e bem, e com coragem, do estúdio, deviam tê-lo feito com a vontade de se distanciarem dele.

Editors

O ano de 2005 já passou e poucos seriam os que, no Passeio Marítimo de Algés, tinham The Back Room, o álbum de estreia dos Editors, a queimar a memória para mais uma volta na onda de revivalismo pós-punk, pró-Joy Division e super solene dos britânicos. Mas a partir da segunda música, naquilo que foi um alinhamento equilibrado entre toda a discografia da banda, a guitarra, estridente e de tremolo picking constante, a pintar de tons garridos a música tipicamente de baixo do género, gritou Munich e deixou claro aquilo que, no fundo, nunca esteve disponível para contestação: os Editors nunca deixaram de ser uma boa banda; para sermos justos, temos mesmo de admitir que, em palco, continuam a comportar-se como uma grande banda. Claro, falaram mais alto os êxitos de discos como An End as A Start e do seu antecessor e debutante longa-duração, malhas com aquele toque cinematográfico que sempre fez parte do universo Editors e que sempre viveram da guitarra — naquilo que é o twist mais saudável do pós-rock actual, devolvendo ao baixo o seu papel harmónico e permitindo que o diálogo entre a voz de Tom Smith e a guitarra de Justin Lockey tomasse as rédeas da melodia. Ficaram em boas mãos, que conseguiram conduzir o concerto ao êxtase em Racing Rats e desfechá-lo com uma mais longa Papilon.

Depeche Mode

Enquanto os Capitão Fausto ofereceram o entretenimento entre concertos importantes, preparavam-se Dave Gahan e Martin Gore para, na sua solenidade disfarçada na batida electrónica a tresandar a 80s, engolir os humores negros que começavam a mergulhar na multidão em frente ao Palco Optimus. Engoliram-nos e tomaram-nos como algo deles, algo só deles, uma responsabilidade de corpos castigados pelo tempo, pelos excessos e pelo sério e triste da vida, propondo a dança como solução para todos os males, num concerto que tendeu mais para os ambientes industriais do que o exótico do synthpop. Os Depeche Modedemonstraram, desde logo, uma capacidade indelével para enfrentar a audiência, justificando – como se dúvidas ainda existissem – a posição de headliner de um festival como o Optimus Alive. Eles enfrentaram a multidão pessoa a pessoa, sempre com um alinhamento capaz de conquistar tudo em uníssono, mesmo tendo um disco novo (que espreitou aqui e ali no alinhamento) para apresentar. Para apresentar, tinham mesmo os Depeche Mode e esses vieram pela forma de Welcome to My World, Angel, Walking in My Shoes e de Precious, músicas que, a cada acorde simples, nos lembram porquê que Gore é, ainda e sempre, um monstro da composição.

Os britânicos correram risco ao incorrerem em alguns momentos acústicos, preferindo sacrificar o concerto enquanto performance em prol do agrado dos fãs que os foram ver — mas é neste equilíbrio que as memórias se constroem e que os que propositadamente se deslocaram a Oeiras para ouvir Enjoy the Silence e Personal Jesus (que encerraram, por esta ordem, o tempo regulamentar da lição de rock, de synthpop, de vida [musical] dos Depeche Mode) levam algo para mais tarde recordar. Deste lado, malhas como I Feel You e Walking on My Shoes pesarão mais, pelo que representam numa banda que consegue equilibrar a alegria da electrónica com a densidade emocional. E, no final, só continua a ser difícil de acreditar que Just Can’t Get Enough seja dos mesmos Depeche Mode que nos gritaram “reach out and touch faith”.

The Legendary Tigerman

Aproveitando a maré que se deslocou do palco principal e do fenómeno que contagiou o coreto com Rockuduro (não deixa de ser curioso, e fica por isso o apontamento, que uma banda como os Throes + the Shine, que tocaram há pouco mais de uma semana no festival Roskilde, um dos maiores do mundo inteiro, sejam reduzidos ao mais menor dos palcos menores do Alive; o fenómeno, contudo, falou mais alto e eles fizeram festa para a primeira e provavelmente única multidão a considerar no espaço),Paulo Furtado entrou com a guitarra nas mãos e a percussão nos pés para entregar um concerto tão à moda do que se espera de um one-man-act. Não é Seasick Steve, mas é Legendary Tigerman, que tantas cartas tem dado nos últimos anos e que encarna a personagem de bruxo curandeiro com guitarra como elixir do blues que afecta a alma. Falou-se de mulheres e Feminaesteve na boca da essência que foi o concerto de Furtado, que reservou para o seu regresso ao Optimus Alive a surpresa que foi ter Paulo Segadães, baterista de Vicious Five e guitarrista de bandas como Men Eater e X-Acto, na bateria a dar a cadência rítmica que apenas duas pernas conseguem reproduzir. E, admita-se, de pé o poder do Tigerman é, realmente, outro, talvez digno das ledas que se desenharam há duas décadas sobre Furtado e sobre os seus tentos pelos Estados Unidos com os Tédio Boys. De pé, o homem de Coimbra passa a ser um monstro de palco, dos que não têm balizamento geográfico possível, e o concerto ganhou toda uma outra energia — a do rock, mais do que do blues.

Crystal Castles

Os estoicos sobreviventes pós-Depeche Mode, já depois de os2ManyDJs terem enchido o set de Kavinsky, Nirvana ou Motörhead, aninharam-se no palco secundário à cata de Stª Alice Glass, nossa senhora dos estupefacientes. Os Crystal Castlesnasceram para isto, para as demenciais madrugadas de um festival de verão, atufadas em álcool, “uppers” e um desejo carnal de sentir as chapadas electro. Os primeiros estrondos contam-se na mesma batida de há meses, no TMN Ao Vivo: Plague e Baptism instigam a poeira, os acotovelamentos e o crowdsurf sem retorno. Alice, de cabelo platinado e saia curta, nunca teme as animalescas madrugadas e benze-as com o seu olhar vidrado, enquanto a robótica Crimewave nos devora a strobe lights e Black Panther nos promete o fim-do-mundo a 8-bit. Destemida, sempre, a canadiana agarra-se à primeira fila e não se importa com as mãos várias que lhe percorrem o corpo, atirando o microfone para o lado e acendendo um cigarro na maior descontração – são quase quatro da manhã e nunca o regime after-hours tresandou tanto a Crystal Castles. Miss Glass, por fim, lá se atira de cabeça para o tórrido público, caindo de pronto na maré de suadas epidermes, capazes de rivalizar plenamente com muito concerto hardcore que por aí se faz. Regressada a palco, acena-nos subtilmente e esfuma-se na cortina de vapor. Já lá vão cinco anos desde o primeiro disco e os synths de Ethan Kath ainda ferem.