O segundo dia arranca com o ternurento e surpreendido olhar de Lisa Hannigan, que, junto às grades do palco secundário, foi rapidamente circundada por pedidos de autógrafos e fotografias. Sinal de que o seu folk serviu de pé direito na entrada deste 14 de Julho – o dia da tomada da bastilha e que, em jeito de comemoração, teve um francês a fazer mossa no Parque Marítimo de Algés. Mas já lá iremos.
Ainda (bem) antes disso, duas figuras subiram ao palco Heineken. Uma menina loira e um rapaz moreno compõem os Big Deal, duo que apenas se faz munir de guitarras para constituir um folk brando que nos sugere uma salinha pequena para o podermos apreciar. Pela cabeça passa-nos o agora extinto Maxime, sítio onde já vimos os Cosie Cherie, um par nacional que em simbiose até ultrapassa estes ingleses.
André Tentúgal transpareceu uma felicidade genuína e totalmente justificável. Ser o primeiro nome português a subir ao palco principal nesta edição do Alive é motivo de orgulho, especialmente para um projecto que ainda nem dois anos de vida soma. Deixemos o calendário e a contabilidade temporal de lado e concentremo-nos numa banda que ao vivo se desmultiplica e que tranquilamente deslinda os temas que têm feito dos We Trust um dos nomes repetidamente sublinhados pelo público nacional. Colocando o trunfo-mor para o fim, que é como quem diz Time (Better Not Stop), André e restante colectivo serviram de melífluo arranque na main stage, numa actuação que agradou àqueles que já iam cerrando fileiras para os The Cure.
A fofice ia marcando estas primeiras horas do segundo dia de festival, contrastando com a toada rock que pautou as horas de sol do 13 de Julho. Contudo, os Here We Go Magic não têm um som propriamente meiguinho. Não é agressivo, nem nada que se pareça, mas uma sensação de constante loop de riffs, batida e vocalizações, desperta o lado mais psicadélico da nossa massa encefálica. Faz todo o sentido que eles provenham de Brooklyn, uma melting pot que já tanta e diferente coisa viu nascer e crescer, algo que se reflecte na sonoridade da banda que veio até Algés para apresentar A Different Ship. Vontade de berrar “God damn the sun”, bem à Michael Gira, já que a luz solar nunca nos deixou concentrar totalmente na faceta mai experimental dos norte-americanos.
Já no palco principal, se a plateia tivesse mão nas leis dos corpos celestes, o sol especar-se-ia ad eternum para dar luminosidade aNoah & The Whale. Com um Charlie Fink que se mostrou encantando com a localização do festival, a banda inglesa que nasceu em Twickenham, recupera um som que faz jus ao seu berço geográfico. Para lá da populosa e densa Londres, estendem-se verdes e planos prados, capazes de “embrionar” um folk a puxar àquele lado mais country/bluegrass de genética norte-americana, mas que Noah & The Whale redirecciona longitudinalmente para Inglaterra. O resultado não é propriamente convincente, mas chega para manter o público sorridente e entretido, nem que seja pelo estilo crooner que Charlie Fink agora emana.
Não foi por acaso que mencionámos Brooklyn como terra-mãe de tanta coisinha diferente. Foi lá que os Wu-Tang revolucionaram para sempre o hip-hop e é também de lá que vêm os The Antlers, banda que desferiu o primeiro belo concerto no palco secundário. De postura shoegaze, suave e harmoniosamente dreamy, o som dos nova-iorquinos embala, encanta e acaba por nos conferir a reconfortante sensação de estarmos para lá de um espaço onde as golfadas de poeira vão entrando a cada rajada de vento. A voz dePeter Silberman, tantas vezes subindo em direcção falsete, dá-nos ordem para semicerrarmos os olhos e deixarmo-nos guiar pelo belo e minimalista slowcore, emocionalmente intenso e eficaz até quando ouvimos as sórdidas batidas da tenda clubbing.
Ainda que os The Antlers estivessem a oferecer uma das melhores propostas deste dia número dois, o secundário estava longe de estar cheio. Os Mumford & Sons já tinham irrompido main stage adentro e com eles arrastaram um enorme número de pessoas. Não será arriscado afirmar que estes ingleses tiveram mais gente a vê-los do que os The Stone Roses na noite anterior, e muito menos ousado será dizer que o número de vozes que se fizeram ouvir foi bem maior do que aquelas que brotaram durante a actuação da banda de Ian Brown.
Surpreende a ruidosa resposta que o público português aplica a cada tema de Sigh No More e até a própria banda sorri com os retumbantes coros, quase indagando o porquê de ainda não terem tocado em Portugal mais cedo. Não será de estranhar caso venhamos a ter novamente os Mumfords & Son s por cá dentro de seis meses a um ano – por essa altura, já a banda terá segundo disco. Sim, eles ainda vão no primeiro.
Os AWOLNATION foram, a cada malha, concentrando mais gente diante de si no Palco Heineiken. Também ela só com um álbum lançado, a banda de Los Angeles faz da esquizofrenia artística a sua maior valência – ora temos Aaron Bruno em modo lullaby durante uma sussurrante passagem, ora o ouvimos aos berros, qual vocalista de metalcore, rasgando a sua voz por cima de algo que se assemelha até a um breakdown ao estilo daquelas muy em voga bandas que misturam o core aos tecidos mais electrónicos. Ninguém entende na plenitude se aquilo que os AWOLNATION trazem a palco é de inegável ou dúbia qualidade e provavelmente foi isso que acabou por confluir atenções para o quinteto.
Só uma imensa prestação dos Morcheeba poderia retirar dimensão ao cancelamento de Florence + The Machine. Escolhidos no dia anterior para substituir os compatriotas liderados por Miss Welch, os londrinos não conseguiram apagar a ruiva da memória daqueles que queriam ouvir Dog Days Are Overe isso reflectiu-se naturalmente durante os quarenta e cinco minutos em que foi possível escutar a voz de veludo de Skye Edwards, bem como toda a smoothness de um trip-hop de viragem de milénio. Rome Wasn’t Build In A Day não chegou para quem queria gritar ‘You’ve got to love’, mas nem por isso os Morcheeba se mostraram menos satisfeitos por mais um regresso a Portugal – alguma vez alguém viu esta banda em modo carrancudo, sequer? Virando costas aos ingleses, também houve quem perguntasse os Crystle Castles não andavam por Espanha.
Ainda os Morcheeba iam groovando umas faixas, já Tricky começava a estilhaçar o palco número dois. Sem grande surpresa, a tenda encheu para lá dos limites, com o britânico a pegar o público pelo colarinho e a dar uma aulinha de sumário irrefutável: como dar um concerto animalesco. Mesmo sem a presença de Martina Topley-Bird (bem substituída, diga-se), proprietária daquela indefectível voz que catapultou Maxinquayepara a ribalta do mainstream, a banda enrolou a plateia numa sagaz performance, cujo apogeu se centrou na cover de Ace of Spades dos Motörhead, com direito a invasão de palco – no meio dela, Tricky ia oferecendo abraços e tirando fotos juntos àqueles que esperavam tudo menos contemplar o Optimus Alive daquele sítio. Há tipos que nasceram para pisar o soalho do palco e o homem que ainda hoje recusar a actuar com roupa sobre o tronco voltou a comprovar que pertence a esse lote restrito.
Quando temos diante dos nossos olhos uma daquelas bandas que já esbofeteou o tempo e beijou o chão da imortalidade, sabemos que há sempre espaço para um grande concerto. E os The Cure, neste seu regresso a Portugal, estavam claramente dispostos a oferecê-lo. Robert Smith já tinha prometido um concerto de três horas, ao estilo daquilo que aconteceu no esgotado Pav. Atlântico em 2008 e a premissa não foi quebrada. À meia-noite, ouviu-se Plainsong, desse Disintegration que merece ser património universal, e o público sorriu com a silhueta de um Robert Smith que mantém intacta a voz que arrepiou e acolheu tanta gente ao longo dos últimos trinta anos. Quando não nos faltam exemplos de lendários grupos que hoje se passeiam pelo mundo arruinando catálogos brilhantes, só nos resta tirar o chapéu e saudar os The Cure por manterem Just Like In Heaven um hino e por terem a entrega suficiente para pegar em trinta e seis temas e rendê-los de forma exemplar, alicerçados num técnico de som que conseguiu provavelmente a melhor acústica até ao momento no festival.
A alternativa aos britânicos fazia-se com Katy B, miúda que nasceu para fazer sucesso nos clubs por esse globo fora. Seja com as suas malhas que vão do tão popular dubstep, ao nunca démodé house, seja com versões de Kanye West, House of Pain ou aindaSweet Dreams dos Eurythmics. Foi com as últimas que a ruiva (afinal sempre havia uma redhead inglesa a actuar no Alive) levantou poeira e aqueceu a tenda para SebastiAn.
Já se tornou hábito a ligação entre a Ed Bangere o festival. Em quase todas as edições, a label maior da electro francesa leva um ou mais representantes da sua crew para dizimar a plateia portuguesa e em 2012 foi a vez de SebastiAn – isto se descontarmos os Justice. Conhecendo o terreno que iria pisar, afinal já por Algés esteve há quatro anos, o gaulês não teve qualquer dificuldade em abrir fendas numa plateia ávida pelo peso da electrónica de um homem que nunca larga o cigarro e que nesta passagem por Portugal trouxe um espectáculo visual centrado na sua hipotética eleição para chefe do primeiro mundo. Irónico e provocatório, SebastiAn foi totalitário no palco secundário e cravou as suas garrafas no corpo daqueles que abriram um enorme moshpit assim que Walkman se fez ouvir e que não mais se fechou até à derradeira saída de cena do francês. Imagine-se se tivesse ido buscar o seu remix de Killing In The Name.
Enfrentando o choque térmico causado pelo calor humano do palco Heineken e o arrepiante frio que se fazia sentir no exterior, foi possível acorrer ao palco principal para testemunharmos o cair do pano do concerto dos The Cure. Com ar de quem tinha começado há cinco minutos, Robert Smith e companhia iam oferecendo a inolvidável Boys Don’t Cry, levando imensa gente a dançar nas franjas de uma plateia bem mais diminuta do que aquela que marcou presença para as primeiras faixas, mas que ainda esperou pelo derradeiro encore, onde se ouviu 10:15 Saturday Night e Killing The Arab como despedida.