Finalmente o Sol, finalmente a Primavera no Primavera. Foi um dia muito versátil, entre lendas da folk excêntrica e do doom, electro-funk eufórico, soul ou pop deprimida. A grande dúvida seria a seguinte: The National ou Charles Bradley? A noite dissipou-as por completo.
Chegámos mais tarde ao recinto e já perdemos algumas coisas relevantes, como o Sonic Youth Lee Ranaldo ou os You Can’t WIn Charlie Brown. A propósito, registe-se o mau hábito de pôr bandas portuguesas a abrir palcos. No caso, é mais facilmente entendível, porque o cartaz do Primavera não tem grandes espaços de marasmo, mas é uma aposta difícil de entender. Especialmente quando, em certas situações, estas atraem mais público do que alguns nomes internacionais francamente desconhecidos.
Jeff Mangum deve ser um tipo insuportável. Não quer fotos, nem filmagens, nem gravações do concerto. E alarga essa paranóia ao público. Fora isso, temos dificuldade em encontrar defeitos no concerto dos Neutral Milk Hotel. A voz não é 100% afinada e, em certos momentos, até faz lembrar a de Billy Joe Armstrong (sim, sim, Green Day). Mas o feeling está lá todo e isso é o que importa. Musicalmente, andam entre uma banda folk da América profunda e uma orquestra em que os instrumentos foram todos minados. Temos vários sopros (um deles tocado por um druida místico), o som fantasmagórico do serrote ou sinos, amplamente envolvidos por alta distorção. Há momentos ligeiramente estridentes (propositados ou não), mas não diminuem o notável resultado final.
Seguem-se os dois concertos de John Grant. Isso mesmo, dois concertos, duas facetas. Abre com o lindíssimo “I Wanna Go To Marz” e aí temos o lado mais clássico, mais orquestral, mais cândido de “The Queen Of Denmark”, na linha de um Perry Blake. Depois, temos os sintetizadores exageradíssimos e a sobredose de graves do último “Pale Green Ghosts” e a coisa entra em caminhos mais electrónicos francamente duvidosos. Tem alguma piada ver um barbudo de barrete numa espécie de dança sensual, mas musicalmente o interesse diminui.
Duas vezes The National (Alive 2008 e SBSR 2010) e duas relativas desilusões. Fica a ideia que, num festival, há um certo intimismo que se perde e que não permite mostrar convenientemente a música dos americanos. Como tal, causa arrepios ouvir falar neles como uma banda de estádio. Não porque estejam a vender-se a esse estatuto, longe disso, mas porque notoriamente não é algo que faça grande sentido. Um exemplo: a lindíssima e quase sepulcral “I’m Afraid Of Everyone” é acompanhada por palminhas. E apetece perguntar à malta: se estivesse aqui o Mozart a tocar piano, a reacção seria a mesma? Por outro lado, Berninger parece estar sempre prestes a desfazer-se em cacos e, se apreciamos a autenticidade, há sempre um certo constrangimento associado. E que é maior quando em maior escala. Há momentos bonitos, como “Sorrow”, com a surpreendente presença de St. Vincent, ou “I Need My Girl”. E, nos momentos de catarse, como em “Squalor Victoria”, estamos definitivamente com o vocalista. Ainda ficamos para ouvir “Ada”, um dos temas mais bonitos de “The Boxer”. O piano surge mais discreto do que em disco, mas esse facto é compensado pelo desfecho, com um excerto de “Chicago” de Sufjan Stevens. Despedimo-nos dos The National e continuamos sem estar totalmente convencidos. Felizes dos que, há uns anos atrás, os viram na Aula Magna ou em Guimarães. Serão momentos irrepetíveis?
23:30h, estamos há cerca de cinco minutos ao Palco ATP e ficamos com a sensação de que chegámos tarde. Perdemos mais de 20 minutos do concerto de Charles Bradley e, com todo o respeito pelos National, foi um erro. Em palco está a reencarnação clara de James Brown. Não só porque foi, de facto e durante alguns anos, seu imitador. Mas porque sentimos a fusão entre alma, comunhão e chama que idealizamos no padrinho da soul (e que observamos em alguns músicos africanos, como Oumou Sangaré ou Seun Kuti, o filho da lenda Fela). Basta ver o documentário “No Time For Dreaming” para perceber que Bradleyé não só dotado de uma voz imensa como a sua ligação à música e a sua humildade são profundamente genuínas e arrebatadoras. Tem uma bela banda por trás e que o venera de forma cúmplice. Circulamos entre o poder de uma soul marcante e um groove funkyaltamente viciante. O resultado é sempre magnífico.
Deixamo-nos ficar e perdemos St. Vincent. A torrente sintetizada dos últimos discos não convence e somos dos que achamos que Anne Clark perdeu toda a sensibilidade que tinha em “Actor”. Há quem a compare ao vivo a Amor Electro, mas acreditamos que será exagero. Assim, temos no ATP o regresso dos Slint, lendas que lançaram dois discos de culto na viragem dos anos 80 para os 90 e que agora estão de volta. Pós-rock antes de haver pós-rock. Um som muito arrastado, muito doomy e em que as vozes surgem propositadamente secundárias. O vocalista canta de lado e, por vezes, de forma quase despercebida, é o baterista quem assume essas funções. Pode ter sido uma grande nostalgia para alguns, mas temos dificuldade em ouvir algo assim nesta fase do festival.
Partimos para a festa final com os !!!. Nic Offer é um tipo porreiro. Mais tarde, vê-lo-íamos a passear pelo festival, a ver outros concertos ou a tirar selfies com o público. Em palco, é uma máquina de entretenimento. Os !!! foram progressivamente perdendo uma certa dureza dos primeiros tempos. Só que, em vez de amestrados, tornaram-se apoteóticos e festivos (ouça-se o single “One Boy/One Girl”, do último “Thriller”). O baixo e os teclados sensuais criam a base rítmica para a performance de Offer. Não canta extraordinariamente bem, mas compensa com energia e carisma. Passeia pelo palco, abraça a multidão e é quase sexualmente provocador. Um festão.
A noite já ia longa e o peso de três dias começa a sentir-se. Quase não vemos os Cloud Nothings e, pela amostra final, com a extraordinária catarse noisy de “Wasted Days”, a impressão que fica é positiva. Sendo um som directo, para as entranhas, havia o risco lógico de que, em termos técnicos, o Palco Pitchfork (tenda) criasse um indesejável efeito abafado. Não pareceu ter acontecido. Correm rumores que disseram que são alemães, quando na verdade vêm do Ohio. Ou são uns grandes gozões ou o cansaço também chegou ao palco. A despedida deu-se depois com o set do DJ espanhol Pional. O Primavera volta em 2015. E, mesmo com o espírito outonal ou invernoso do Porto quando menos se espera, volta muito bem.
Para ver mais fotografias deste terceiro dia do NOS Primavera Sound, segue até à página do PA’ no Flickr.