A ousadia de explorar novas sonoridades e novas dimensões da própria música não é novidade em Moonspell. Em quase vintes anos de carreira, estes Senhores do metal português fizeram questão de construir e percorrer múltiplos percursos, sem que nunca se tivessem acomodado a uma única fórmula. “Sombra”, o espectáculo acústico ontem estreado no São Jorge e prestes a percorrer dez outras salas do país, é mais um desses percursos e um brilhante exemplo desta capacidade de se recriarem sem nunca perderem a identidade.

Mas embora em “Sombra” tudo seja Moonspell, nem todos os que integram o espectáculo são Moonspell. A acompanhar a banda nesta tour nacional está um projecto bastante especial, já não totalmente desconhecido: os Opus Diabolicum, quinteto composto por quatro violoncelistas e um percussionista, responsável por um projecto de tributo aos Moonspell e encarregues, igualmente, de acompanhar a banda em palco na sua apresentação acústica.

Foi precisamente com a versão tributo que a noite começou – já depois da chegada triunfal dos Moonspell (se é que se pode chamar triunfal a uma chegada num carro funerário) -, com os Opus Diabolicum a subir ao palco ao som de uivos de lobos, e foram bem mais do que um aperitivo para o que se seguia, deixando desde logo evidente o que é possível fazer com as músicas da banda homenageada. Finisterra,NocturnaVampiriaOpus Diabolicum, um original intitulado MoonspellTenebrarum Oratorium e Trebaruna, por esta ordem, compuseram o pequeno concerto, curiosamente mais centrado nos primeiros trabalhos da banda: o EP Under the Moonspell e o CD de estreia Wolfheart. Exímios executantes, sempre comunicativos e enérgicos, justificaram plenamente os aplausos em pé duma plateia rendida a este breve mas intenso momento.

Poucos minutos depois, os Opus Diabolicum estavam de volta ao palco, mas para acompanhar os próprios Moonspell e, assim, com um papel bem mais discreto. No entanto são eles, em grande medida, os responsáveis pela profundidade e ambiência renovadas que as músicas de Moonspell ganharam, sendo por isso importante elevá-los ao estatuto que merecem e oferecer uma respeitosa vénia.

Ao som do sample que dá início a Handmade God e atrás da longa cortina branca que escondia todo o palco, começava, finalmente, a esboçar-se a “Sombra”, percebendo-se no movimento dos vultos que se projectavam na cortina os músicos a acomodarem-se nos seus lugares. O inconfundível vulto de Fernando Ribeiro suscita o primeiro grande aplauso e o pano abre-se para finalmente revelar os corpos dos músicos e a música ganhar, também ela, corpo. E sim, corpo é a palavra, pois estas reinterpretações ou recriações (o que lhe quiserem chamar) são mais do que meras sombras das músicas originais. Têm vida própria, cresceram e sobrevivem muito bem sozinhas. Quero com isto dizer que, se ser fã e conhecedor de Moonspell pode contribuir para a nossa apreciação dos temas – talvez por nos proporcionar uma familiaridade mais imediata –, estas são facilmente apreciáveis sem essa condição.

Os arranjos das músicas são bastante ricos (como se já não fosse o caso de muitos dos originais), munidos de novas influências e atmosferas (é impressão minha ou o início da The Southern Deathstyle parecia um tango?) e isto contribui para expandir a aura que já possuíam ou até mesmo para lhes oferecer, em alguns casos, uma nova vida – como por exemplo Luna, numa versão bem mais melancólica e lenta, espaço também em que as Crystal Mountain Singers ganham protagonismo (tal como em Scorpion Flower).

Todos os álbuns da banda são alvo de revisitação nesta experiência. Nas palavras do próprio Fernando Ribeiro, um dos maiores prazeres de a realizar deriva da possibilidade de recuperar músicas antigas que deixaram de ser tocadas ao vivo e que, de outra forma, não voltariam a ser. Tal comentário não podia vir a propósito de melhor momento do que o que veio a seguir: Can’t Bee, música de uma das mais sublimes obras desta banda, The Butterfly Effect, e, infelizmente, também uma das mais subvalorizadas.

Momentos antes, Disappear Here já tinha permitido visitar este trabalho, mas Can’t Bee foi, na minha opinião, um dos momentos altos da noite, quer pela beleza que a própria música original já revela, como pela nova dimensão que ganhou nesta revisitação – muito graças às cordas dos Opus Diabolicum –, manipulando alguns momentos particularmente intensos do tema interpretado sem nunca lhes roubar essa intensidade primordial – talvez até adicionando algo mais.

Handmade God, que abriu o concerto, Second Skin (segundo Ribeiro, a sua “versão” preferida), Magdalene Mute (também nas palavras do vocalista, que subscrevo, uma das músicas mais belas que Moonspell já escreveu), tornaram Sin/ Pecado – outro dos CD’s injustamente “esquecidos” do repertório da banda – o trabalho mais visitado neste espectáculo. Mute foi também motivo de uma pequena homenagem a Peter Steele, o carismático frontman de Type O Negative, uma das maiores influências da banda portuguesa, desaparecido há alguns meses.

Com um apelo para que todos se levantassem, seguiu-se a inevitável Alma Mater, razão de ser um momento folclórico, “panfletário e incendiário”, sempre gratuito e excessivo nas prestações de Moonspell, que vivem muito bem sem aquele circo, embora façam questão de o alimentar e o façam, certamente, cheios de orgulho.

Imediatamente a seguir, e a caminho de terminar a noite, apareceu uma grandiosaSenhores da Guerra, como que a limpar as “glórias” do passado invocadas no “hino” quase bélico que a antecedeu, desta vez sem Mike Gaspar na bateria. Música original dos Madredeus não podia, por isso, deixar passar uma viva homenagem “à melhor banda portuguesa de sempre” e, em especial, a Francisco Ribeiro, seu violoncelista e fundador, falecido no mês passado.

E, naquilo que se assume ser um ritual incontornável nos concertos de Moonspell, “um momento de comunhão com o nosso público”, Fullmoon chegou para encerrar a noite de forma quase épica, em mais uma reinterpretação que não deve muito à original.

Não há como destacar algum dos temas interpretados pois, apesar da nova luz que receberam, permanecem Moonspell no seu melhor, não fossem alguns deles o que de mais grandioso a banda já concretizou. No entanto, a sensação que fica é que nesta versão os concertos da banda perdem em espectáculo, até pela ausência de algum do aparato cénico habitual. A contribuir para isso está o facto de este não ser realmente o “território” de Fernando Ribeiro, o que se nota no facto de ser o membro claramente mais inadaptado, não só em termos vocais como na postura corporal em palco, algo desamparada. Se Mike Gaspar é muitas vezes aquele em que se sente mais o virtuosismo, ao sentirmos destacado o seu enorme ecletismo técnico, emFernando Ribeiro sente-se, em alguns momentos, a dificuldade em acompanhar as nuances das músicas, desaparecendo por completo o vocalista quando a música cresce. Nos raros momentos em que Ribeiro fez uso do seu poder vocal, aproximando-se do registo original, a música ganhou logo outra profundidade, deixando até a pensar se esta versão acústica de Moonspell não teria muito a ganhar com mais presença da verdadeira e inconfundível voz do vocalista, em vez desta sua sombra mais apagada. Porém, com o andar do concerto, a voz perdeu alguma da “timidez” inicial e o vocalista entrosou-se melhor com a banda, ficando também mais à vontade em palco – o que faz supor que com a máquina oleada tudo poderá ser bem diferente. Mas nada disto mancha a excelência de Sombra e tudo aquilo que o torna num concerto imperdível, não só para os fãs da banda.

Resta dizer “Parabéns, Moonspell“, por mais este marco, de que poucos se podem gabar.