Mais um dia e o calor teima em insistir, tanto que deixa quase tudo intocável, até a relva a escaldar. Insistentes foram também os Ghost Hunt com a sua electrónica repetitiva; Pedro Chau no baixo e Pedro Oliveira rodeado por modeladores, sintetizadores e drum machines, demonstraram-se competentes mas não conquistaram. Fica a sensação de que todo o material que os acompanha é mal aproveitado e que a sua sonoridade podia ser mais interessante, talvez com umas quebras ou um tom mais progressivo. O sentimento de aproveitamento dos recursos foi completamente oposto com os TOMAGA. Na percussão, Valentina Magaletti, apresenta-se com um kit de bateria diferente, que nos proporciona os mais diferentes tipos de batidas. Nos modeladores, baixo e sintetizadores, Tom Relleen, em volta de toda a maquinaria, deixa um travo de experimentação em tudo o que toca. Sendo eles membros dos The Oscillation é normal que em partes se sinta traços do psicadélico, que nos deixa a viajar por toda a sua improvisação. Apresentam-se os dois sentados mas a sua música desconcertante, deixou poucos elementos do público sentados. Este foi, para muitos, um dos projectos revelação desta edição.
Deixa-se a experimentação e improvisação e passa-se para a electrónica tribal de Barrio Lindo. É impossível não relembrar a actuação de Nicola Cruz no primeiro dia, pois as influências são claramente muito semelhantes. A actuação do argentino Agustín Rivaldo deixa uma grande sensação de libertação do calor que tanto prende. A fechar a piscina uma escolha improvável; The Legendary Tiger Man em djset. Fica uma sensação geral de que se desligou do que se passa no palco, o público fica mais preocupado em como se refrescar de uma maneira mais física, visto que o set ali apresentado não transmite essa sensação. Este talvez tivesse enquadrado melhor no dia anterior, em que a programação deste palco se encaixava melhor com um set de rock’n’roll.
Do outro lado do recinto, longe do calor abrasante da piscina, os lisboetas Qer Dier abrem mais uma tarde de rock à sombra das magníficas árvores que cobrem o parque fluvial de Barcelos. Rock instrumental rítmico, repetitivo, vibrante, inclinado para o garage rock. Três rapazes em palco, cada um no seu mundo mas todos eles com um pé no mundo bizarro que é o de Qer Dier. Depois dos lisboetas entram os My Expansive Awareness, directamente de Zaragoza com uma mística que seria expectável da mais americana das bandas de rock psicadélico. Autointitulam-se como “neopsicadélico e space rock” e não parece estar muito longe do que seriam bons denominadores para eles. Por estranho que seja ouvir inglês cantado por quem tem o castelhano como primeira língua, desta feita não soava mal, nada mal. É envolvente e relaxante, o ideal para uma tarde para curar a ressaca à sombra. A seguir sobem ao palco os catalães Extraperlo numa sonoridade totalmente diferente. Um pop que imaginaríamos ouvir na velhinha VH1, com os videoclips que estranharíamos de tão coloridos e com efeitos especiais bizarros. Mas nem por isso foi desinteressante! Música light-mooded, cantada em castelhano, para contrastar com as viagens espaciais dos aragoneses que os antecederam, num registo mais terra-a-terra, que dava para sacudir a anca devagar e com um sorriso nos lábios.
Faltava o bizarro do Taina. Os Qer Dier têm uma sonoridade experimental e muito própria, mas com os Orchestra Elastique a fechar a tarde de concertos neste palco, os lisboetas parecem fazer música ordenada e pausada. Saxofones, sintetizadores, walkie-talkies e uma espécie de harpa de levar ao peito. A banda sediada em Londres, faz da música um recreio, sem medo de experimentar e fazer ruído. Quando se recolhem influências de música folclórica de todos os cantos do mundo, vai-se beber à música minimalista e junta-se uma pitada de drone, está a receita preparada para uma banda que dá nova dimensão à palavra “estranho” – uma verdadeira orquestra, verdadeiramente elástica.
E as bizarradas continuaram à noite, depois de mais um jantar com a Rádio Popular de Paulo Cunha Martins. Os Evil Blizzard entram em cena ainda o sol não se tinha posto, como prenúncio para a noite mais pesada do Milhões. Que se desmistifique a ideia de que uma banda de música pesada tem necessariamente de apostar nos riffs de guitarra com distorção a rebentar a escala. Quem tem por hábito fazer piadas proto-ofensivas sobre baixistas devia pôr bem os olhos e os ouvidos no que fazem os Evil Blizzard. Subam os cinco, ou seis?, de Preston, Lancashire, com quatro baixos, uma bateria e as horripilantes máscaras que levam na cara e no corpo. As máscaras e as personagens que encarnam são uma boa descrição da expressão “nightmare fuel” – especialmente o porco de fato-macaco verde, que segurava um machete e um cutelo (de espuma, claro) completamente ensanguentados, que não se mexeu quase até ao fim do concerto. Não se percebeu muito bem o que é que aquela sexta personagem estava a li a fazer, do lado esquerdo do palco, para além do “factor horror”. Os Evil Blizzard são monstros, nas máscaras, na atitude e na música. Claramente estão em palco para se divertirem e não para impressionar – são provocadores profissionais. O que tocam não poderia condizer melhor com as personas que levaram para cima do palco Milhões, um resultado perfeito da fusão entre a animação do stoner mais nojento e do sludge mais divertido – se é que isto faz sentido. É música pesada, isso é inquestionável, mas é para abanar a cabeça, não necessariamente para fazer headbang. E não pararam de surpreender com o avançar do concerto. Foram ficando cada vez mais provocadores, mais horripilantes, até fazerem entrar um “convidado especial”. Entram três crianças, presumivelmente os filhos dos Evil Blizzard, com fatos completos ou máscaras tão macabras como as dos músicos, e rapidamente se tornaram as protagonistas. Já ninguém olhava para o porco talhante, ou para o glam rocker saído de um pesadelo sombrio, a não ser que os miúdos fossem aos ombros deles. Como se não chegasse, a banda pediu uma invasão de palco (pode realmente chamar-se “invasão” quando é pedida pelos próprios?). Sobem cerca de uma dúzia de pessoas ao palco Milhões e ala, peguem vocês nos instrumentos. Passam-se os baixos para as mãos dos corajosos que subiram e senta-se à bateria outra pessoa qualquer. Foi, sem dúvida, um concerto super divertido e cheio de surpresas. Pena é que tenha sido tão cedo (quiçá pela hora de ir deitar os garotos, que isto de vida de rock’n’roll não é para quando se tem 10 anos). Estivesse mais gente no recinto àquela hora, não teria sido só divertido, teria sido apocalíptico.
Mantemos o peso, mas para deixar cair a cabeça e não para espetar os braços no ar. Part Chimp era uma das promessas mais desejadas para o elemento pesado do Milhões. São barulhentos, muito barulhentos, e sem qualquer tipo de inibição quanto a isso. A oscilar entre o doom e o stoner, com elementos de noise, também não é fácil meter os Part Chimp numa caixinha, como tantas vezes acontece com as bandas que passam por este festival. Notava-se, no público, uma tensão acumulada pela vontade de levantar um bocado a poeira, de sacudir a cabeça com violência. Os Part Chimp são, efectivamente, violentos. Não pela postura em palco, não pelas letras, mas pelos ruídos metálicos e animalescos que produzem. Têm qualquer coisa de épico, ilustrada pela voz de Tim Cedar, que dá o tom mais humano e menos selvagem à banda londinense.
Transladamo-nos de novo para o Palco Milhões e muda totalmente o ambiente. El Guincho é uma banda ícone do MdF, foram até o hino da primeira edição em Barcelos. Quem acha que o synth pop morreu em 2010, pelos vistos está bem enganado. Enquanto alguns faziam a festa (e que festa), outros reclamavam o quão desnecessário era aquela banda voltar ao festival. Haters à parte, a banda de Pablo Díaz-Reixa mostrou-se competente mas sem surpresas. Na recta final é feito um “comboínho” que cresce e cresce a um ponto que já ninguém percebe onde este começa e onde acaba. É engraçado observar a animação presente na plateia, que contagia até quem tem alergia.
Se há bandas que passam pelo Milhões que é difícil encaixotar, não foi o caso dos Oozing Wound. Trash metal, puro e duro, sem filtros nem vergonhas. E isso estava plasmado em tudo o que vimos em cima do palco – a luz verde nauseabunda, as longas cabeleiras a abanar e a Flying V a rasgar. O público estava sedento por um bom moshe, já que em Part Chimp o arrastar melancólico dos riffs não o permitia. E foi isso que nos deram, com pausas para respirar um bocadinho de doom. São uma banda de metal digna do nome mas sem grandes surpresas. Como se ouviu na audiência, “estes gajos andam ouvir muito Kreator”.
Se os El Guincho fizeram a festa no Palco Milhões, o Dan Deacon fez festão. Este é um nome já bem conhecido dos portugueses, tendo já tocado no Serralves em Festa e no NOS Primavera Sound. Desta vez fez-se acompanhar apenas por uma baterista, mas não foi por isso que esteve pior – é um artista que dá sempre conta do recado, com mais ou menos gente em palco. O alinhamento passou maioritariamente por clássicos como “Snookered” e “Crystal Cat”. A sua electrónica experimental carregada de ruído, que nos faz sempre lembrar os velhos jogos de consolas ou antigos desenhos animados, tem todo esse caris lúdico e alegre. Dan Deacon é já ele um poço de felicidade, tão contagiante que mete tudo e todos a mexer e é quase impossível parar com aquele frenesim de sons. No final os corpos cansados, a transpirar felicidade, mal sabiam o que estava para vir.
Ho99o9 lê-se “Horror”. E fazem jus ao nome. É difícil saber por onde começar. Podiam ser uma imitação barata de Death Grips, mas são tão mais do que isso. Juntem-se as escolas do hip hop e do punk americano e temos o que de melhor se pode pedir. The OGM e Eaddy relembram-nos bem aquilo de que a “cena” deve ser feita, com energia, com raiva, com furor. Têm um baterista que pouco ou nenhum tempo teve para respirar, duas torres de amplificadores de guitarra empilhados, sem o guitarrista, e têm uma energia que não coube no parque fluvial de Barcelos. Este foi, sem dúvida, o concerto mais tumultuoso desta edição do Milhões. Hip hop com d-beat e hardcore punk sem guitarrista em palco, dois monstros em palco e fora dele, a escorrer suor e destilar nojo pelo mundo em que se inserem. Têm o groove do hip hop nova iorquino; têm a atitude do punk que de vez em quando sentimos que se está a perder; têm o factor macabro e politizado – lanternas sobre mantos de feiticeiro, luvas com tentáculos, hinos contra o poder instituído. Juntemos os mortais para trás, os saltos alucinantes, os jogos com o público – Eaddy salta para fora do palco, abre-se uma clareira e senta-se no meio: “now everybody sit the fuck down, and then we ALL jump together”. O pormenor “we all jump together” é vital. Foi nestes momentos em que se sentiu bem aquela que é a escola destes dois vocalistas, que sabem bem que o punk e o hip hop se faz com o público, no meio de quem está a suar tanto como eles. O moshe era interminável e os Ho99o9 sabiam que estavam em casa, ainda que estivessem a um oceano de distância. Uma cover de Bad Brains com uma dedicatória: “The kid with the Bad Brains t-shirt, yeah you, this one goes for you”. The OGM veste um colete de ganga com o nome da própria banda pintado a caneta permanente, atirado para cima do palco pelo baixista dos galegos Vozzyow e diz que vai ficar com ele, porque sim, porque gosta dele. Ho99o9 não é o tipo de banda que se ouça em casa. É possível, mas não é satisfatório. Não depois do apocalipse e da hecatombe que foi o concerto que apresentaram no Milhões. Não é possível compreender nem medir a imensidão daqueles dois homens, vindos das caves e dos concertos pantanosos de Nova Iorque, transferidos para LA. Os Ho99o9 estão a abrir novas fronteiras dentro do punk e dentro do hip hop, a levar a cena a um novo extremo, mantendo-se fiéis aos sítios de onde vieram, sem se deixarem estagnar na misantropia de cordel. Ficaram as nódoas negras, a exaustão e o desejo de mais. O desejo de que aquele concerto não acabasse nunca.
Menos sombrio apresenta-se o kuduro de Nídia Minaj que cria uma sensação de mixed feelings, principalmente quando opta por passar David Guetta. Estava tudo a achar piada ao tarracho, principalmente com as suas remisturas, que passaram até pelo clássico da música pimba “Toma Toma Minha Linda” do Emanuel. Nídia tem sido uma artista muito embalada pelo ímpeto da Príncipe e pela dedicação da Pitchfork, com uma base internacional de admiradores – foi do Guetto ao Panorama Bar. No final ficou a sensação de que se esperava algo mais coerente, que nunca tivesse perdido a piada. Se a fechar o dia de recepção tivemos os DJ’s da Casa, no último dia houve os DJ’s Yeah – não é a mesma coisa, mas quase; só faltou mesmo Lovers & Lollipops Soundsystem. Conseguiram prender o público com um set maioritariamente electrónico que passou desde Floating Points até Azelia Banks. Como este é um festival para se aproveitar ao máximo – descansar é para meninos – nesta edição do MdF houve nos dias 23, 24 e 25 das 6h as 13h, um after não oficial organizado pela Ácida, no tão conhecido Xispes. Tal como os panados ali servidos, estas festas eram só para os mais fortes. O alinhamento ia desde live’s de Velge Naturling, Crossfade Memory e Nils, passando por pessoas que tinham tocado no festival e apresentavam ali outros projectos, como Conhecido João e Dj Shperma, até aos nomes que fazem parte da Ácida, Arrogance Arrogance, Lynce e Phantasma. Este tipo de eventos demonstra como este é um festival que não é só feito na cidade mas sim, para a cidade, levando o público a explorar e a conhecer os espaços mais míticos e emblemáticos. Mítico e emblemático são palavras que encaixam perfeitamente no Milhões de Festa, com a promessa de que para o ano há mais.