Volvido um mês sobre o dia em que centenas rumaram a Barcelos, parece que ainda se sente o sol nos ombros queimados, as dores nos pés das infindas horas de pé e aos saltos, e um constante zumbido no fundo dos ouvidos. Já morremos de saudades do Milhões de Festa e achamos que é altura de recuperar as emoções que vivemos a partir do dia 21 de Julho. O sol já se punha, o campismo já estava lotado e o Taina já vibrava. As primeiras horas do Milhões de Festa são sempre de uma alegre azáfama e quem é repetente do festival sabe-o de ginjeira.
Este ano o Palco Taina deslocou-se da sombra do castelo para o interior do recinto, mas com uma filosofia semelhante. De novo, os concertos no primeiro dia foram gratuitos, com o espaço do recinto aberto a todos os festivaleiros, barcelenses e potenciais curiosos. À semelhança do ano passado, mesmo entre concertos, não se deixou assentar poeira – este ano esse trabalho ficou a cargo da malta da FAVELA DISCOS. Depois de no ano passado, no último dia do festival, terem partilhado a curadoria deste palco com a SWR, este ano não nos deixaram arrefecer nos intervalos – com misturas, remisturas e o improviso, electrónico e não só, ritmo não faltou e as batidas iam ficando cada vez mais fortes e apuradas à medida que as horas e os concertos iam passando. No fundo mostraram-nos como esta colectânea de artista se tornou num projecto sólido, com a certeza de que ainda vamos ouvir falar deles e dos seus afiliados por muito tempo. Para além dos intervalos, também nos presentearam com o concerto de abertura – MADA TREKU, este que produz com o rótulo deste coletivo, apresentou o seu techno obscuro e denso – que bem podia ter fechado o dia, mas não soube pior em forma de aquecimento. A malta da Lovers foi gentil na primeira abordagem seguindo-se a MADA TREKU, os Vozzyow e os PO + AL. Às 22h decidiu-se que estava na hora de começar a abrir cabeças – literalmente. É mais difícil descrever o concerto dos Eat the Turnbuckle do que foi vê-lo – e sim, ver o concerto, não necessariamente ouvir. Já se sabia que o concerto teria uma vertente performática, pelo aviso que a Lovers & Lollypops colou junto do palco, que advertia acerca da natureza gráfica e violenta do concerto. Corriam uns burburinhos acerca de um ralador de queijo mas nada podia fazer adivinhar o que se seguiu. Quando cinco colossos sobem ao palco, qual deles o mais tenebroso, sentiu-se uma certa atmosfera pousar em redor do Taina. Entre a excitação e a curiosidade mórbida, foram-se juntando algumas dezenas de pessoas, sem saberem muito bem o que esperar daquilo. O grind dos Eat the Turnbuckle não é um grind particularmente difícil, talvez próximo dos lendários Pig Destroyer, mas com mais “groove”. Mas o interessante dos Eat the Turnbuckle não é música. É o sangue. Entrar em pormenores gráficos do concerto é desnecessário, iria roçar o grotesco e o macabro, mas em jeito de provocação basta referir que alguns dos adereços dos Eat the Turnbuckle eram um cortador de pizza, uma serra para metal, uma tocha envolvida em arame farpado, e uma porta. Não era só grind, nem era só wrestling, nem era só sangue. Era de uma violência absolutamente gratuita. E por isso mesmo o público esteve tão animado e tão em cima do palco, talvez a ver quem ficaria mais manchado de sangue.
Depois de bem cientes sobre o sofrimento, a vida e as mazelas que esta pode deixar, segue-se uma viagem ao mundo dos 10 000 Russos, que deixam o público a levitar sobre a poeira que ainda assentava sobre os seus pés. Psicadélico obscuro, q.b. de progressivo, riffs longos e melódicos. Aliados a batidas e graves bem definidos e vibrantes, que se fazem sentir nos corpos, com um toque final de voz de fundo, criam um cenário negro, deixando, ao mesmo tempo, uma sensação de relaxamento. Depois da sova dos Eat the Turnbuckle, uma pausa com 10 000 Russos, e entram os suecos Aggrenation. Esta banda de crust-punk nórdico não se desvia do que já é familiar a conhecedores e apreciadores do género. Os três rapazes tocavam riffs graves e acelerados, coesos com vocais guturais e arrastados. O início foi tímido – por parte deles e do público. Mas a pouco e pouco foram acelerando o passo, e o moshe foi aquecendo também. A música não apresentava muita variedade – caía sempre mais ou menos dentro da mesma fórmula clássica – mas nem por isso perdia a graça. Os Aggrenation são qualquer coisa como uns Totalitär mais juvenis, com claras influências de Tragedy no que à voz diz respeito. Os Aggrenation são bons – mas podem ser muito melhores. No pré-festival foram vários os artigos que nos chegaram com os must see no Milhões de Festa. Jibóia é um nome que não consta nessas listas, já faz parte da prata da casa. Depois de já se ter apresentado no festival a solo e como Jibóia Experience, foi a vez de apresentar o seu mais recente formato. Óscar Silva, acompanhado do baterista Ricardo Martins, cria um novo impacto no que toca às batidas. A guitarra e voz de Óscar são agora presenças mais frequentes, não sendo motivo para que o seu Casio seja esquecido. Na reta final um convidado é chamado ao palco – Luís Lucena, baixista dos SAUR, junta-se para as duas ultimas malhas. Primeiro uma cover da “Tomorrow Never Knows” dos Beatles, a mística já inerente à música conciliada com um toque cru, resultam na perfeição. Fecham com “Luanda” do mais recente álbum – Masala -, que cria uma enorme onda de felicidade, tanto em palco como na plateia. Se para alguns o psicadélico oriental aqui apresentado não conquista, para muitos outros é como hipnótico, onde o público se torna a cobra e a banda o encantador. A fechar a noite estiveram os DJ’s da Casa, caras conhecidas, pelo menos do público mais assíduo, que meteram a mexer os que não tinham medo de perder energia para o resto dos dias. O início do set demorou a cativar, mas com o seu desenrolar, apareceram ritmos mais fortes e dançáveis, bem como um sabor mais eclético. A presença de sons mais conhecidos fez esquecer que afinal o festival ainda mal tinha arrancado.
Na manhã seguinte o calor tirou toda a gente da tenda cedo, mesmo quem teve a sorte de encontrar um lugar à sombra – era hora de descer; descer para um refresco; descer para as piscinas municipais de Barcelos; debaixo de água; de molho. Quem nos acompanhou com o primeiro mergulho foi a Surma. A jovem Leiriense de quem tanto se tem ouvido falar apresentou o seu “pop fofinho”, com um aroma experimental. Claro que as influências são muitas, mas num espectro geral, esse é o rótulo que melhor lhe assenta, não sendo de todo pejorativo. Ao controlo de teclas, samplers, cordas, vozes e loop stations, Débora Umbelino demonstra-se eficiente em palco. Com uma postura um pouco tímida, que lhe confere um ar doce e querido. O seu alter-ego, que é o nome de uma tribo indígena etíope, deixa um paladar bem presente na sua sonoridade. Este é um projecto que ainda tem muito para amadurecer, por isso, é de acompanhar. Com as temperaturas cada vez mais altas, mais um mergulho, mais um concerto – segue-se a dupla americana Wume com uma sonoridade que encaixa perfeitamente depois do concerto de Surma. O ritmo de April Camlin e a eletrónica de Albert Schatz criam uma sensação de descontracção e frescura, que não podia saber melhor. Corpo e espírito mexem-se, até mesmo dos que estão de molho. Aumentam as batidas, aumentam as expectativas. Seguia-se o nome mais aguardado na programação da piscina para aquele dia – Nicola Cruz com a sua cumbia embrulhada. Sons minimais e orgânicos que se tornam hipnotizantes. Os passos de dança transformam-se num quase ritual sul-americano – dança da chuva não foi decerto, talvez do sol, porque esse nunca faltou. A fechar a piscina – Nan Kolè, com os seus ritmos fortes e com travo africano. Este não prendeu o público na sua frente, no entanto é mesmo essa a mística da piscina – o público poder relaxar e recuperar energias sem grande compromisso com o palco e, mesmo assim, tirar o máximo de proveito da música.
No Taina entrou-se a matar com os Uppercut, um golpe de post-rock, que não deixou ninguém K.O. mas deixou mossa. De estilos completamente diferentes, mas com um impacto da mesma ou até mais intensidade – Malandrómeda, de Santiago de Compostela, apresentam o seu rap embrulhado em 8bit. À hora de jantar, que coincidia com o fecho deste palco, Paulo Cunha Martins apresentava Radio Popular, onde mostrava a sua colectânea de discos de música popular portuguesa. Este acompanhamento foi servido não só neste dia, mas também nos restantes.
O quinteto de rapazes de Vila do Conde, Evols, teve as honras de inaugurar o palco Milhões nesta edição do festival. Fazem um rock bem-disposto, com cheiro a mar, mas que não se parece em nada ao surf rock que se esperaria ouvir de uma cidade de praia como é a Vila. São mais românticos, com as mesmas distorções e os mesmos ecos do surf rock clássico, sim, mas chegam a dar uma ligeira cotovelada aos britânicos Daughter, pela doçura com que tocam e cantam. A abertura do Palco Lovers, outrora conhecido como Vodafone.fm e ainda, antes disso por Vice, foi feita por MFK Marcy Mane e Kane Grocerys, que representaram a label Goth Money Records. Mesmo atrasados por questões de transporte, conquistaram com o seu hip-hop de batida lenta e atmosférica. Demonstraram o seu contentamento por estarem presentes no festival e despediram-se apelando a que acompanhássemos a editora nas redes sociais. Bem mais acelerados apresentam-se os Sons of Kemet e conquistam facilmente o público, que responde com uma dança desenfreada. Se havia duvidas de que o jazz ainda se conseguia reinventar, com apenas duas baterias, uma tuba e um saxofone, esta banda só deixa uma resposta possível. Sim! O palco Milhões encontrava-se completamente despido, dado o bom tempo. No lugar do mítico triângulo estava um desenho de uma explosão, desenho esse que se encontrava no meio da banda que, por si só, é também uma explosão de alegria e boa disposição. Da alegria e boa disposição dos Sons of Kemet, passamos para algo completamente oposto – a colaboração dos californianos Marshstepper, com o português HHY e o sueco Varg. Este é um concerto de difícil digestão e para muitos de compreensão, ao ponto de parte do público ter abandonado o Palco Lovers. Um cenário sombrio – no centro do palco duas mesas cheias de modeladores e sintetizadores – do lado esquerdo os Marshstepper, que são a grande base desta colaboração e, do lado direito, HHY e Varg. Electrónica experimental com uma voz que só adiciona ainda mais noise denso, muito denso, que se transforma em progressivo com a adição de batidas fortes, pesadas e corpolentas. Resumidamente – psicologicamente denso e obscuro, mais obscuro é quase impossível. No final, se muitos não estavam preparados ou com disposição para o que foi apresentado, outros afirmaram ser um dos melhores concertos do festival.
Saltando de novo para o palco Milhões, damos de caras com o bizarro cenário que os GOAT construíram. A música é tão alucinante como seus fatos fazem prever. Máscaras douradas, ossos, plumas, túnicas até aos pés, como se Veneza se tivesse encontrado com uma África subsaariana pré-colonial. Não é fácil descrever o que aconteceu em cima daquele palco. Foi uma experiência tão contagiante como delirante. Para sintetizar GOAT, e estando muito longe de lhes fazer justiça, podemos falar em afrobeat e psyrock. E sim, funciona. Muito melhor do que seria expectável. No entanto, este concerto foi muito mais pautado pela “world music” (o que quer que isso signifique) do que propriamente pelo psy-rock. O que não é mau, de todo, o público estava ao rubro. Mas por momento sentimo-nos mais em Sines do que em Barcelos. O melhor adjectivo para os caracterizar é “contagiante”. As duas vocalistas em êxtase e a banda num transe introspectivo, as cores e luzes que bruxuleavam no palco, contavam histórias de viagens. Viagens que se podem fazer de olhos abertos, com os braços no ar e a cabeça a sacudir, ou de olhos fechados, com o mundo virado para dentro. Os GOAT, para além de “contagiantes”, são estranhos. Ou não houvesse tanto mistério em redor dos membros da sua formação, da sua origem, e mesmo de há quanto tempo existe este projecto musical. É estranho porque ouvimos música que tem sabor a África tocada por suecos, sem ameias nem fronteiras. E o concerto que apresentaram no Milhões de Festa foi tão apoteótico como a música que tocam. O público estava tão enlouquecido como os GOAT, e, a dada altura, pareciam peixes no rio: eram aos três e quatro de cada vez a flutuar sobre dezenas de mãos.
Já o ano passado ficamos com água na boca por mais. Kevin Martin, o homem por detrás dos óculos de sol e ao comando de centenas de corpos meneantes, voltou a trazer The Bug a Barcelos. Na edição de 2015, trouxe-nos hiphop e electrónica com dois MCs tão animalescos como ele, que devoraram o palco enquanto o The Bug nos corroía os tímpanos. Este ano, foi “acid ragga” com a incrível Miss Red. Como um dos responsáveis da Lovers disse, antes do arranque do concerto, “se há alguém que sabe o que está a fazer, é o The Bug”. Nada a acrescentar. Quando Kevin Martin sobe ao palco, envolto numa névoa e luzes baças, começam a sentir-se os formigueiros a trepar a coluna. As frequências que já carcomiam os ouvidos do público eram prenúncio de mais um concerto apocalíptico. E quando a israelita Miss Red entra em cenário, não havia olhos para mais nada. Era ela, só ela. Uma mulher sozinha no palco Lovers, que o dominou como se de um pequeno e escuro bar em Londres se tratasse. Não é frequente ouvir uma israelita cantar ragga – e menos ainda com sotaque jamaicano. Mas naquela noite nada fazia mais sentido. Os olhares que a Miss Red e o The Bug trocavam dispensavam tradução ou análise profunda. Estavam a divertir-se tanto como nós. O ragga frequentemente está associado a ambientes mais… Leves, digamos. Vem do reggae, afinal de contas. Mas a dupla sediada em Londres conseguiu transformar aquela forma de ragga em qualquer coisa de apoteótica e assustadora, até dado ponto. Não é música a que se faça justiça a ouvir em casa, seja de fones ou até com um bom soundsystem. É música para ouvir com a medula espinal. Temos a rouquidão familiar das vozes do reggae verdadeiramente jamaicano, o menear das cabeças entorpecidas, a velocidade no cantar e a lentidão no mover dos pés. E quando lhe acrescemos a mestria do The Bug no dub, no noise, e no hiphop, temos ragga verdadeiramente ácido. Quando a “Diss Mi Army” começa a ecoar pelo parque fluvial de Barcelos – e seguramente até Esposende – já o suor escorria a chorros. Sacudiram-se ancas e braços, e tapavam-se ouvidos quando se atingiam frequências mais diabólicas – nem toda a gente arranjou tampões para os ouvidos a tempo. A dado ponto, entra também em palco o londinense GAIKA, que tem algumas colaborações com a feroz Miss Red. Apresentou-nos uma versão mais acelerada da sua “BUTA”, que repetiu na noite seguinte, no mesmo palco e a solo. De novo, e como tantos outros projectos que ouvimos no Milhões, não é fácil descrever o que se ouviu e viveu no Palco Lovers. Há coisas que é preciso experienciar para se compreender – por isso é que fica um imenso desejo de rever o The Bug no Milhões numa próxima edição. Afinal, com a quantidade de projectos que este monstro da música electrónica tem, teremos música para anos vindouros.
A fechar a noite o colectivo Cheryl que deixou o parque fluvial de Barcelos coberto com um manto de glitter. Apresentaram-se com uma tela gigante no meio do palco, onde projectaram trechos e até créditos de filmes. À frente da tela vão acontecendo performances por elementos do colectivo que usam vestimentas extravagantes. São lançados elementos igualmente extravagantes para o público, mantas prateadas e outros adereços, sendo o mais predominante o glitter. Vários elementos do colectivo espalharam gliter pelo público e no final, difícil era sair sem ele. O dj encontrava-se do lado esquerdo do palco, vestido com uma túnica e com uma máscara de glitter. Não esquecendo a música, maioritariamente house, sempre com um grande groove, meteu tudo a mexer e não deixou o glitter morrer.