24 de Julho • Dia 0
Barcelos é uma cidade com personalidade. Dona de uma beleza que alterna entre o natural e o arquitectónico, com destaque para as paisagens promovidas pelos sucalcos amuralhados para o horizonte de Cávado a seus pés. Tínhamos acabado de chegar à Taina – expressão minhota que acarreta a missão de bem comer e bem beber, e afinal, é exatamente disso que se trata. Juntemos múmsica e algumas drogas ao cenário e a contextualização do primeiro dia/noite de Milhões de Festa, bem como a das tardes dos restantes, está concluída.
O minúsculo palco Taina surge-nos com uma estranha coerência e perfeição visual, tal como se ali desde sempre pertencesse. Uma caganita num enorme e delicioso cenário que, no entanto, é o motor da inércia dos corpos e dos espíritos dos milhionários que se empaturram sempre com muito álcool a desembuchar. Quem lá se encontrava eram os Alek Rein. O trio tuga foi lançando malhas de fácil e agradável digestão rítmica onde, na vozinha, a aura é puramente indie rock. De seguida, a ilustrar paradigmaticamente o termo bandalheira (sonora) que caracteriza o festival (e o Taina, em particular), os Serrabulho tomaram conta do palco. De novo uma banda portuguesa, mas agora temos um vocal que nosoundcheck já gritava impropérios e, pelo que nos pareceu, resultaram em chamamento – foi quando o aglomerado em torno do palco se começou a adensar.
O grindcore da banda vila-condense veio achincalhar uma noite até então muito limpinha: no palco, o jogo do empurrão desentorpecia os músculos cansados da viagem festivaleira. Nas muralhas, sorrisos acompanhavam os rápidos grunhidos de suíno a retratar realidades duras de um festival como o hit “Quero Cagar E Não Posso”. O decorrer da noite evidencia-nos que qualquer coisa funcionaria no palco Taina, desde as nossas bandas preferidas até ao mais nonsense e descabidos Iguanas; ou Ghettoven, um dos novos a(poia)dos projectos pela Antena 3.
Descobrimos também que a linguagem é fonte de mensagens subliminares contundentes – algo que os Putan Club materializam sonoramente e nos põem de imediato a exclamar impropérios boquiabertos em clara sintonia com o título e com o que a dupla fraco-italiana fez bem no meio da maralha. A italiana Gianna Greco e o francês François Cambuzat foram injectando possantes descargas de energia galopante, com baixo e guitarra respectivamente, onde os elementos electrónicos preenchem o restante espaço, avançando por frentes de drumkits que vão desde o post-industrial ao noise chegando até ao dubstep e ao techno. E, tudo isto, desenrola-se dentro de um círculo incerto de força bruta, massa corporal, tinto e suor. No fim, permaneceram no ar e nos corpos os resquícios de adrenalina que acompanharam os convivas na restante noite com DJ Senhor Guimarães. LA
25 de Julho • Dia 1
Um dia abafado acordou em Barcelos e nós não fomos para a piscina. Fomos, sim, novamente ao Taina procurar uma sombra para assistir a Maurício Takara. Evidentemente, a grande maioria dos convivas prefere uma tarde de cloro e volúpia na piscina municipal, o que resultou num início de tarde demasiado ausente junto do solitário músico brasileiro escondido pela sua armação de percussionista. A bateria titubeava ora sem ritmo, ora em incurssões funky típicas do trip-hop, com o recurso a samples e ao loop a establecer melodias simplistas. Perto do fim, o performer que, terminada a actuação, permaneceu em palco com os Baoba Stereo Club, pegou e pôs a chorar um cavaquinho enquanto os pés aceleravam e travavam um ritmo de bombo e prato.
Os Baoba são aquele tipo de conjunto que funcionaria em qualquer sítio e a qualquer hora com a sua “música instrumental” – os próprios assim, simplesmente, se definem. Com a bateria agora a cargo de Snoopy, ocupa-se Takara dos sintetizadores e de outros elementos de percussão, Diaz da guitarra e Gold do piano, emanando-se a partir daí uma refrescante e melódica panóplia de temas em formato jam de jazz e chill out. Destacaram-se, do seu disco homónimo (2010), faixas como “Ode À Preguiça”, “Para Cachaito” ou “Maré”, e, lá para o meio, ainda houve uma menção de crate diggin a “National Acrobat” de Black Sabbath. Não eram muitos, mas quem estava não deixou de prestar a devida ovação ao óptimo concerto que os brasileiros em tour europeia ofereceram a Barcelos. LA
A piscina revelou-se o cenário ideal para relaxar perante os ritmos e deambulações instrumentais dos Riding Pânico. Numa versão expandida, oito elementos – divididos por várias guitarras, baixo, bateria/percussão e teclados/efeitos – foram borbulhando fora de água longos temas post-rock que lembram bandas como os Red Sparowes, Slint ou Tortoise. Música deste calibre e dinâmica acarreta alguma complexidade e sincronia, mesmo quando se repetem ritmos krautrockianos alimentados pelo propulsar do baixo e da bateria, aos quais juntaram teclados que trouxeram uma vibe psicadélica ao concerto.
É um facto que no grupo gravitam músicos com créditos firmados, mas também tornou-se evidente que o entrosamento entre todos neste concerto não saiu incólume. Tivemos os crescendos e as variações de ritmo/intensidade que se esperavam – quem gosta deste tipo de sonoridade deve ter ficado deliciado/embalado, mas fica a sensação que algum excesso de confiança ou lacunas de entrosamento minaram aquele que podia ter sido um dos melhores concertos do dia.
De regresso ao Taina, os vianenses Mother Abyss subiram ao palco para promover o seu “Burden”. Deram tudo para arrancar dos instrumentos um sludge bem pesado e ritmado. Apesar de não terem sido protegidos por uma sala fechada e um som mais potente a sair das colunas, não se fizeram rogados no ataque de riffs familiares aos adeptos do estilo e ritmos sincopados que empurraram a voz gritada e forte do vocalista André Gonçalves. Apesar de nem sempre encontrarem, em cada tema, um cunho próprio que os destaque de vários grupos que existem a praticar este estilo sludge/post-metal, a verdade é que foi bastante agradável levar com o peso e o groove dos Mother Abyss. É de esperar que continuem a trabalhar e a evoluir, para que daqui a algum tempo consigam transpor a barreira que os irá levar a outros patamares artísticos/criativos.
No último concerto da tarde, os Soccer96 atordoaram os nossos sentidos passando todos os níveis de um jogo de computador em universo futurista, onde habita confortavelmente a música que fazem. É inquestionável a entrega e energia do grupo, sobretudo quando se assumem como um duo que cria ambientes (por vezes distorcidos, quase glitch) e poliritmos recorrendo apenas à bateria e sintetizadores. Um concerto animado e vindo de uma realidade paralela que foi engraçado conhecer. PN
Não será demasiado arrojado referir que o palco Milhões ficou marcado desde a sua estreia. Só é de pesar que às 20H tenham sido poucos os que assistiram embevecidos a Jambinai. A banda coreana já conquistou o palco do FMM e, em Barcelos, obrigou a grande maioria a um imediato estancar de conversas e à aparição repentina de expressões aparvalhadas. Nem todas as faixas possuem uma tradução literal e dela, na realidade, não precisamos – o sentimento é o território pelo qual se movimenta o post-rock do quinteto asiático que, devido à singularidade dos instrumentos utilizados, adquire um carácter único – e é através deles que comunicam. Maioritariamente, as músicas chegam aos dez minutos de duração, começando calmas e terminando em apóteose. Porém, logo à segunda, dispararam a curta e pesada faixa que inicia o disco “Difference”, demostrando claramente que apesar de sentadinhos, e do registo melódico, não são meninos alguns. O tímido e sorridente frontman, que toca guitarra e um dos instrumentos típicos de sopro (utilizando o loop para ir trocando de arma), anunciou o final do concerto; a música encarregue de para lá nos encaminhar em perfeita “Connection”, como aludiu, guiou-nos também para a existência do disco pelo qual se pautou o set à venda no recinto. “Difference”, de 2012, capaz de derreter até os mais embrutecidos e obtusos indivíduos por esse mundo fora. LA
Chelsea Wolfe apresentou-se em palco com uma longa túnica de seda e fez-se acompanhar por três elementos, sendo que o violinista nos primeiros temas teve o seu instrumento abafado pelas condições técnicas deficientes que atormentaram este espetáculo, mas que mesmo assim, não quebraram a magia e a melancolia que costumam estar presentes na música de Chelsea. A artista deu voz aos ambientes introspetivos e góticos, ora despertando momentos mais ritmados, ora mais etéreos. Chelsea não se poupou a agarrar na guitarra para dela distorcer as melodias até novo momento de introspeção. Em alguns momentos fez lembrar a fase obscura de PJ Harvey por alturas do disco “White Chalk”.
Ouviram-se temas como “We Hit A Wall”, “House Of Metal”, “The Waves Have Come”, “Ancestors, The Ancients”, entre outras. Um concerto que agudizou o meu arrependimento por não a ter visto num ambiente mais intimista e com melhores condições sonoras. Em várias alturas do espetáculo foi praticamente impossível não dispersar a atenção do palco, o que também dificulta o ambiente criativo de Chelsea. Em mais um regresso a Portugal, fica a memória de um concerto bonito e intenso, de uma artista capaz de nos transportar para cenários arrebatadores, mas que não teve a envolvência sonora e física que resguardassem a beleza fatal das músicas que bem conhecemos.
Os The Cult Of Dom Keller subiram ao palco Vodafone para apresentarem o seu disco “The Second Bardo” editado este ano. Munidos de um jogo de luzes eficaz, carregaram nos pedais das guitarras e dispararam efeitos fuzz, delay, reverb etc., assim como ritmos fortes e uma atitude relaxada que lembrou em alguns momentos os The Jesus And Mary Chain. Aliás, a sonoridade deste grupo deve um bocado à cena shoegaze, e foi a partir dessa premissa que tentaram conquistar o público. Para acompanhar as vozes graves e alucinadas, tentaram impor uma cadência rítmica com muito groove, quase motorik. Para além de trazerem boas memórias do rock dos anos 80, às quais juntam apontamentos de música psicadélica e algum peso, os The Cult Of Dom Keller saíram vencedores do palco.
Os brasileiros Boogarins têm vindo a reunir alguma euforia por se tratar de uma banda de jovens que conseguiram um contrato de distribuição internacional com a editora americana Other Music, sem sequer terem acordo de distribuição no seu próprio país, e isto cantando sempre em português. O grupo veste e toca sob influência da música rock dos anos setenta e entraram em palco bem soltos (quem sabe devido a qualquer salada de cogumelos). Tocaram, como se fossem estrelas rock, as músicas que formam o disco “As Plantas Que Curam”, tendo havido tempo para mostrar ainda o que virá no próximo disco. O facto de cantarem em português e de tocarem rock com claras influências da música psicadélica dos finais dos anos 60 e início dos 70, faz deles uma espécie de herdeiros do tropicalismo, que adquirem aqui uma roupagem mais solta e parca nos meios característica do garage. Como jovens a viverem o seu sonho, os Boogarins riram, divertiram-se, soltaram-se em solos e trejeitos de banda de estádio e mais do que estarem a reviver o imaginário dos seus heróis deram um excelente concerto, deixando as portas abertas para o que virá a seguir. Deste lado ficam grandes expetativas e saudades. PN
Uma banda sediada e fundada em Amesterdão por um luso-venuzuelano e dois ingleses, em que as influências provêm do dobro ou mais destes países, e encarnam o triplo de estilos musicais dos mesmos? Saímos um pouco antes que o vocal dosBoogarins abrisse os olhos (se é que abriu) para respirar Fumaça Preta no Vodafone FM, mesmo apesar de estar a ser “bem legal”. O trio, fundado por Alex Figueira, representa paradigmaticamente o conceito do line-up do Milhões, fumando do tropical latino-americano à pura punkalhada, sempre com rítmos frenéticos típicos do funk e pingos generosos de psicadelismo. Logo perto do começo ficamos com as “Pupilas” dilatadas, e, passado um momento, o agitar dos corpos torna-se um mandamento religioso obedecido cegamente pela plateia. Alex foi o pregador dessa religião, fazendo-nos sentir dentro de um carro sem amortecedor durante a excelente “Sitar” que evoca “Maggot Brain” deFunkadelic, em alternância com uma guitarra electrizante e uma interpretação quase pop que elucida sobre “fazer amor no elevador”. O forró litúrgico prossegue com outras contagiantes malhas como “Eu Era Um Cão” ou “Organ”, sem scratch mas com uma enebriante distorção da guitarra de Stuart Carter. Na parte final, surge o riff que estoira a faixa “Fumaça Preta”. Esta que, lá para o meio, descamba em javardeira noise representativa do ideal de loucura necessária à libertação espiritual pregada por Alex Figueira. E, claro, a fechar a missa foram as teclas esguias e o groove jingão de “Vou-me Libertar” a produzir as últimas baforadas.
Os The Vicious Five retornaram para três dos últimos gigs que prometem para a sua carreira e, em Barcelos, deram o número dois depois de terem passado pelo Alive. No primeiro dia de Milhões, o Albergaria pareceu-nos mais maldisposto do que o costume. “É a tua mãe”, “Cheiram a leitinho” e “Sou mais punk que vocês a dormir” foram as punchlines mais recorrentes. Claro que, apesar da relação amor-ódio que o vocal gosta de establecer, o público nunca conseguirá discutir com ele depois de malhas como “Coffe Helps” ou “Lisbon Calling”. No fim, a eterna “Electric Youth” acabou mesmo por ser o momento mais fortemente abraçado do concerto (para a certa irritação de Albergaria Punk).
Os Sensible Soccers têm posto muita gente a falar de Braga e do “8” que de lá saiu. A plateia e as muralhas em torno do palco Vodafone estavam repletas. É inquestionável a qualidade das suas trabalhadas composições, todavia estas não nos soaram emancipatórias o suficiente para transporem as quatro paredes sem se constiparem. No entanto, a banda não pareceu enfrentar qualquer problema de maior com um público que ofereceu reacções notáveis em faixas como “Fernanda” ou “Sofrendo Por Você”. O final da noite foi encarregue ao turco Baris K que, para os outros como nós sentiram àquem a actuação anterior, ofereceu uma lufada de groove capaz de revigorar a alma e ainda pôr o corpo a mexer alegremente ao som de samples de música tradicional turca com um granda beat por cima. LA