Depois do dia 27 acabar com chuva, o último dia de festival começou com… mais chuva.Por entre um parque de campismo repleto de tendas alagadas começava a temer-se pela realização dos concertos na piscina e no Taina. A motivação para continuar, essa era clara: curiosidade geral para ver Jibóia Experience e Mykki Blanco e ansiedade mal disfarçada pelos Dirty Beaches ou pela festa grossa dos Orange Goblin. A meio da tarde já as coisas se encaminhavam para a sua resolução e por essa altura uma piscina algo despida (não estamos a falar da indumentária dos presentes, é mesmo da quantidade deles) tentava o seu melhor para receber os Torto, que fizeram por merecer toda a atenção e mais alguma, inclusivamente estreando uma música nova composta para a ocasião. O rock pouco dado à previsibilidade de Jorge Coelho e companhia foi como que um bálsamo para as preocupações que terão afligido tantos dos festivaleiros, com a guitarra do músico portuense a destacar-se pela tonalidade simples de quem não precisa de muito para pintar belos quadros com as seis cordas – já o consegue fazer em formato acústico e juntando a passagem para o formato eléctrico a uma secção rítmica de pendor marcadamente jazzístico a sua subtileza encontra assim o contra-ponto perfeito. [LP]
Já na piscina tinha estado Ana Miró, encarnando o seu novo projeto chamado Sequin. Aproveitando os primeiros raios de sol, a artista fez cintilar a sua luminosa pop electrónica, agarrando com convicção os sintetizadores, donos de variadas paletes de ritmos, para animar o início da tarde. Enquanto isso a sua sedutora voz trabalha as melodias doces, com batidas fortes e coloridas. Os samples refrescantes e dançáveis de Beijing ou Flamingo auguram um excelente futuro para este projecto. Ainda houve tempo para os bracarenses Long Way To Alaska nos mostrarem algum do seu folk. O set foi marcado por alguns problemas técnicos, que levaram a uma longa espera e soundcheck. O público, ainda assim aguardou de maneira tolerante enquanto a banda fez os possíveis para manter a boa disposição. Falando da sua música, o novo EP da banda Life Aquatic traz temas mais tropicais mas as qualidades, vincadas em anteriores aventuras mantiveram-se intactas. É com melodias inocentes, e imaginários suaves e adocicados que nos fomos despedindo da piscina nesta edição do Milhões de Festa. O retrato do fim-de-tarde na piscina fica marcado por uma música que irradia felicidade para combater a nostalgia dos últimos momentos no espaço. [CT]
A despedida do palco Taina teve lugar debaixo de um toldo improvisado de forma a garantir a segurança do material. É curioso que num palco marcado pela presença das bandas da SWR, tenha sido encerrado com a suavidade e relaxe que os Biarooz espalharam à sua volta. Longe do rock e, pese a utilização de instrumentos tradicionais, a tender para a electrónica, os Portugueses fecharam com considerável bom gosto um palco em que a combinação entre boa música, churrasco e vinho a rodos, reinou durante quatro dias. Muito antes, havíamos testemunhado um dos poucos concertos sem fosso para fotografia ou grades a ter ocorrido neste palco. Naturalmente cortesia dos Vai-te Foder. Apesar de um som extremamente embrulhado, a banda de Braga despachou a boa dose de punk/crust aporcalhado que seria esperada. Com esta gente já se sabe que não é altura para pedir grandes requintes, mas antes rock, degredo e destruição, como dizem em Rock no Canoa, com que encerraram as hostilidades.
A primeira enchente do dia no palco Milhões teve lugar aquando da presença dos Riding Pânico. Antes disso, foi com os The Partisan Seed de Filipe Miranda que tiveram início as actuações no recinto principal. O singer-songwriter de Barcelos fez-nos esquecer o cansaço e o lugar onde estávamos, levando-nos por uma sessão de hipnotismo através da melancolia das suas composições, daquelas que parecem destinadas para um espaço fechado mas que têm naquelas primeiras horas da noite em que o sol vai descendo e no anfiteatro natural onde se desenrola o festival uma segunda casa. Voltemos então à enchente provocada pelos Riding Pânico. Com muitas das bandas do Milhões a serem claramente demasiado estranhas para os festivais de verão mais tradicionais do nosso pais, ao assistir ao concerto da banda lisboeta e à forma como conseguiram forçar o público a render-se do princípio ao fim, ficamos com a sensação de que poderiam perfeitamente ser um grande nome também nesses locais. O que é certo é que os autores de Homem Elefante não só beneficiaram de um som coesíssimo como tiveram a presença de palco das grandes bandas para fazer o melhor das condições que tinham. A diferença entre o Milhões e os tais outros festivais, é que aqui os Riding Pânico puderam atingir este patamar, tendo a oportunidade de crescer anualmente com o apoio do festival, culminando este ano com uma considerável enchente no palco principal. O reverso da moeda, é que se possa criar a ideia de que o som dos Riding Pânico seja a melhor representação possível de tudo aquilo que se passa anualmente em Barcelos. Não que a mistura de post-rock com um ou outro laivo de peso e uma constante presença de teclados seja mal feita, mas é bastante limitada em si mesmo, nunca tendo a expansividade no lado “post” da coisa que caracteriza os melhores do género nem tendo o peso a surgir de forma visceral como acontece em territórios mais pesados. Apesar de serem bons naquilo que fazem, o que fazem não é assim tão bom quanto isso e preferimos pensar no quão único e desafiante foi o concerto de Black Bombaim com la la la ressonance – esse sim, praticamente impossível de encontrar noutro local e cartão de visita perfeito do Milhões de Festa. [LP]
De regresso ao palco Vice para assistir ao concerto de Alex Hungtai e dos seus Dirty Beaches. De regresso ao Milhões, depois de já cá ter estado em 2011, reparamos que algumas coisas mudaram desde então. O álbum de 2013 chamado Drifters/Love Is The Devil é mais robusto e excêntrico do que o anterior. O estilo passou de uma abordagem lo-fi de inspiração rockabilly para um estilo que bebe influências a autores como são John Maus ou Richard David James, com poderosos laivos electrónicos . Esta metamorfose acaba por ser um sucesso. Se por um lado a música está mais contemplativa, balanceia um equilíbrio curioso entre a percussão electrónica e a voz agressiva de Hungtai, sempre teatral, gritando indecifráveis sons e agitando-se como se estivesse treinando uma qualquer arte marcial. O concerto é uma experiência com um tremendo carácter físico, onde as batidas pulsantes resultam em explosões cruas e onde as suas oscilações coldwave, de alguma tendência gótica, nos levam para uma musculada atuação. Os sintetizadores são em largos momentos cintilantes e profundamente hedonistas, vibrantes e dançáveis, ainda que encobertas numa larga dose de experimentalismo. A melodia puxa pelo lado mais negro da natureza humana, num exercício metafísico visceral e minimalista largamente enlouquecedor e dono de ma originalidade e profundidade marcante. Ainda haveria espaço para receber os Siesta!. A banda espanhola tem uma proposta baseada nos riffs, inspiração punk e batidas electrónicas em loop, de tendência chavascal e com sintetizadores de base. O seu som não é de complexa inspiração e bastante limitado a alguma energia, caótica, mas com poucas ideias. O resultado foi um ambiente morno, em que o duo não conseguiu acalantar um ambiente pouco dado à loucura. Siesta! acabou por não rimar comfiesta. [CT]
A primeira de duas grandes festas no palco principal é o concerto de Orange Goblin (o segundo sendo o de Jibóia Experience). Se a digressão da banda britânica se tem ressentido dos problemas na sua génese (avarias na carrinha e sobretudo ausência do guitarrista Joe Hoare devido a uma lesão no tendão de Aquiles, substituído por Neil Kingsbury), isso foi algo que não se sentiu em Barcelos, com os autores do mais recente A Eulogy for the Damned a conquistar o público sem apelo nem agravo e a provocar uma das mais explosivas reacções desta edição do festival, não necessariamente de dança mas de efusivo mosh e crowd surf constante. Nem é por acaso que o publico reagiu efusivamente fossem temas novos ou antigos, a carreira da banda é marcadamente consistente e recheada de malhões escritos para serem tocados ao vivo: do clássico Blue Snow à mais recente celebração desenfreada de The Filthy and the Few. O terceiro dos mais antecipados concertos ditos ‘pesados’ do festival pode não ter tido o peso do primeiro dia ou a sujidade dilacerante do segundo, mas esteve cheio daquele stoner apaixonado pelo mundo do heavy metal, diferenciando-se sobretudo pela escrita directa de canções recheadas daquele sentimento rock n roll despreocupado e sem merdas. Quem parecia perfeitamente consciente de que estava a ser um grande concerto era Ben Ward, que entre músicas ia repetidamente parando e esboçando ou agradecimentos ou simplesmente comentários de admiração surpreendida por aquilo que se ia passando à sua frente. Passando por temas como umaSome You Win, Some You Loose que lhes saiu fantástica, umaYour World Will Hate This com todo o seu inevitável frenesim ou até a mais recente e bem orelhuda Stand For Something, os Orange Goblin iam demonstrando pura e simplesmente estar numa forma extraordinária. A receita pode não ser a mais intrincada de sempre, nem gerar o mesmo tipo de paixões de uns EHG, mas se se pedia um concerto festivo para o último dia então a escolha foi perfeita. Despediram-se com a empolgante Red Tide Rising levando a multidão a mais um momento de euforia e ficando a certeza de que serão recordados com saudades.
Um concerto como o de Orange Goblin normalmente implica uma pausa momentânea para recarregar baterias antes de se passar à próxima paragem. Facto que ficava bem evidente se olhássemos para a passagem entre os palcos Milhões e Vice durante o concerto de Zombie Zombie. Era ver um fluxo constante e com apenas um sentido de gente a seguir para assistir à actuação do duo-feito-trio (com a adição de mais uma bateria). O tribalismo e electrónica com que infundem o kraut que lhes está na base do som foi de uma extrema eficácia, já que tanto interessados como apenas curiosos acabavam por se ir acumulando junto ao palco e adicionando o seu número à massa dançante que aí se acumulava. Acaba por ser ilustrativo de um daqueles fenómenos muito próprios do festival, que é a abertura das pessoas para, com toda a naturalidade e com ou sem conhecimento prévio da música da banda, irem entregar-se a uns Zombie Zombie depois de saírem do mosh de Orange Goblin. [LP]
Tempo para uma refrescante oferta, com Jiboia e a sua trupe de amigos do colectivo Coronado a se aliarem para um set único de festa. A originalidade da música de Óscar Silva, com os seus arabescos de psicadelismo na guitarra e nos sintetizadores, a desbravarem um trilho com rumo ao oriente, já é conhecida. Costuma haver ainda Ana Miró, que acompanhada ao vivo os exóticos ritmos de Óscar com a sua sensual voz. Ainda assim, o que se passou no palco Vodafone foi uma surpresa para todos. É necessário fazer uma enorme vénia a um grupo de jovens e promissores artistas, que pertencem a alguns dos mais inovadores projetos da cena nacional, e que se juntaram para tornar o set de Jiboia mais corpulento, dinâmico e festivo. Assim, Zé Pedro,Ricardo, Luís, Cláudio, Gonçalo e ainda Fábio (que deu uma ajudinha na parte final), formaram equipa com Ana e Óscar para um momento de largo brilho, de intensa dança e satisfação. Os sorrisos que vinham do palco garantiam uma premissa que os membros da Coronado gostam de fazer vincar . O espírito familiar, de proximidade com o público, sempre honesto e genuíno é um aliado de todos. A ousadia de, no dia de encerramento de um importante festival, um grupo de jovens lutar pela música que fazem e conseguirem encher o palco com um conceito não antes experimentado, torna o final de noite memorável. A animação dos riffs e das batidas é o testemunho da capacidade dos sonhos. Terá sido um momento único para compreender e testemunhar que o talento existe em solo nacional e assim constatar que, se estes miúdos não abandonarem o talento com que fazem música, a música dificilmente os abandonará.
Finalizado o último concerto no palco Vodafone, Mykki Blancotrouxe ao palco Vice as suas rimas num estilo a que muitos denominam por Rap Queer. A incomum produção do concerto ofereceu bailarinas e mc’s provocantes, enquanto o DJ mostrava batidas hiperactivas e psicadélicas. As rimas sempre foram uma corajosa arma para evangelizar o público nas suas causas, enquanto trajes ousados se mostravam no certame, pretendendo chocar a mente mais conservadora. Foi com um carisma implacável que Mykki se lançou rumo ao público, afim de convívio, enquanto debitava uma enxurrada de letras agressivas. As canções sacudiram linhas de baixo de alta potência combinam com o seu dress code original, e com uns shorts rosa catalisa largas doses de selvajaria dançável e suscita o espanto da maioria. Para despedida, sobrou El G que alimentou as últimas horas do festival e nos pôs a dançar entre ritmos latinos que viajaram de Buenos Aires. Cumbias electrónicas e reggaetones esgotaram os últimos resquícios de energia antes de abandonarmos o recinto pela última vez. [CT]