Calor, calor, calor. Não há nada pior do que acordar suado, enfiado num saco cama com um tipo barbudo a gritar contigo para ires tomar banho. Mas depois apercebes-te que o teu destino é a Piscina, que ainda tens um dia de Milhões de Festa pela frente e o teu humor ajusta-se à ideia de acordar comer um panike misto e beber uma cerveja e tudo se torna mais belo e amarelo.

Ainda que tenha passado mais um ano sem experimentar os míticos panadões do Xispes, experienciei mais Barcelos que o ano passado, muito às custas do Palco Taina. Num dos cenários mais bucólicos do festival, deu para provar vinho, bifanas e o rock sem merdas dos Kilimanjaro. Três miúdos cuja vontade é fazer música que obedece apenas e só ao riff, conduzidos por uma voz que transpira e escorre rock ‘n’ roll. Um bom aperitivo para uma tarde que ficaria completa com a actuação dos Amazonas em modo lounge – leia-se post-rock – para curtir à sombra e de uns Midnight Priest eléctricos e cada vez mais porta-bandeiras de uma New Wave of Portuguese Heavy Metal.

Com o sol a apertar e o estômago bem cheio, era tempo de avançar para a Piscina. O sol assim o pedia e graças a essa maravilhosa invenção que é a roda ainda conseguimos mexer o pé ao som do rock extremamente dançável e fresco dos Naytronix. Mas aqui o tempo para lamentações é curto. Aliás, aqui não há tempo nem espaço para lamentações quando a banda que se segue no alinhamento são os Moon Duo.

Gingões, de barba monumental e com uma calmaria transcendente, o duo soube impor a hipnose mais serena e gingona que se viveu na Piscina. À boleia de Mazes, uma guitarra cíclica e sintetizadores prementes, deu para sentir na pele uma espécie de evolução e refinamento natural dos Suicide no som dos Moon Duo, que só ficou bem ao descer do sol na Piscina. AMS

A Al-Madar, a orquestra árabe de cinco pessoas, coube o papel de abrir o derradeiro dia de Milhões no palco principal. Aquilo que parecia ser um concerto com tudo para correr mal, ou, melhor, sem nada que o fizesse correr melhor, principalmente no que à audiência diz respeito, revelou-se um dos mais belos momentos de fim de tarde do festival. No balanço positivo da força, foi o melhor, deixando o lado das bolachas (negro, portanto) para a actuação demolidora de RA. A audiência, afinal, tinha só ido jantar e estava ansiosa por fugir da Europa durante uns dias; o som passou só pela fase estranha do início; e a música, essa, era absolutamente deliciosa. Ora de guitarra típica da península, ora de flauta, o libanês e líder de Al-Madar. Bassam Saba ia dividindo o papel de arabizar a música com o violinista Timba Harris, funcionando ambos como encantadores de serpentes que iam conduzindo cada pessoa ao seu lugar. No fim, tiveram direito a uma merecida ovação de pé – o que parecia vazio mostrou-se bem cheio.

Depois de uma espera ligeira, num último dia empenhado em pôr os atrasos todos para trás das costas, entram os Riding Pânico no palco Vice. À semelhança do que aconteceu em 2010, ainda que numa versão menos “macacos me mordam!” nas primeiras malhas, o colectivo apresentou-se em palco com um terceiro guitarrista, também ele vindo de Men Eater – não era Mike Ghost, mas sim o último senhor-cordas a entrar para a banda de Lisboa –, cedendo às evidências de que era preciso aquele amplificador extra para chegar em força a Lady Cobra. E, melhor ainda, para mostrar que as novas músicas são organismos vivos, ideia que contraria a noção de que o post-rock é história. É, realmente, parte do passado, mas os Riding Pânico, percebendo isso, já não se ficam pela repetição de fórmulas e apontam o seu rock instrumental em direcção ao mais pesado, ao mais progressivo e ao mais imprevisível. O cover da 21st Century Schizoid Man feito em 2010 foi explicado em 2012 com o melhor concerto que vimos da banda, portanto. AF

O Milhões é mais que mergulhos e cervejas. Por aqui sente-se o mundo, ouve-se o mundo e viaja-se pelo mundo se nos alinharmos com as frequências certas. Se foi fácil fazê-lo, por exemplo, com os Al-Madar, a tarefa adivinhava-se um pouco mais complexa com os L’Enfance Rouge. Já os havíamos ouvido no Amplifest, mas este ano o trio francês soou ainda mais apurado. O mapa traça-se facilmente: o ponto de partida é a garra e vontade de fazer dissonâncias que conhecemos aos Sonic Youth, junta-se-lhe um toque étnico resgatado ao médio oriente e o exotismo assume formas sensoriais, bem audíveis pelo recinto fora. AMS

Depois da energia crua dos L’Enfance Rouge, sobem ao palco os mais trabalhados Memória de Peixe. A dupla, ora acompanhada de baixista, ora de convidados como Da Chick e Ed Rocha, de Best Youth, conseguiu superar em energia um álbum que peca pela falta dela e conseguiu encher o palco “secundário” do festival de gente, disponível para dançar e fazer a festa. Contudo, algumas falhas do disco homónimo ficariam por colmatar e algumas músicas, como a contagiante Fishtank , mostrar-se-iam vítimas da regra dos loops de 7 segundos. Em concerto, como no álbum, os Memória de Peixe mostraram boas intenções. Infelizmente, isso nem sempre basta.

Aproximava-se, então, um dos momentos altos do festival. Alt-J, autores de um dos discos de pop mais contangiantes de 2012, preparavam-se relutantemente em palco para começar a tocar e iam-se debatendo com problemas de som no palco. Depois de uma Intro cheia de feeling, a banda de Leeds ajustou tudo e chegadaTessellate rendeu-se às evidências: o público sabia as letras, dançava a sua música e estava totalmente à sua mercê. Navegando ao sabor do seu An Awesome Wave, os britânicos não se coibiram a esboçar sorrisos e a dar o melhor seguimento a um legado claramente deixado por Paul Simon, mas que estes, em disco, trilham de forma mais electrónica. O espanto de, ao vivo, os Alt-J conseguirem ser tudo aquilo a que se propõem apenas com quatro instrumentos a funcionar não tomou ninguém, porque a banda não se assume como mais do que aquilo que é – a gratidão com que se dirigiam e sorriam para a audiência acabou por ser mais um ponto a jogar a seu favor; quem é que não gosta de malta humilde?

An Awesome Wave tem a característica especial de todas as músicas serem singles. Todas elas são folk, são pop, mas todas, sem excepção alguma, tresandam a soul; outras têm indubitavelmente um calor africano a remeter para Graceland, e há ainda as que sejam acusticamente electrónicas, como Fitzpleasuremostrou ser possível, ao proporcionar alguns dos momentos de dança mais compenetrados na audiência. Os Alt-J são grandes em disco. Ao vivo mostram-se melhores e capazes de surpreender. Nada falhou naquele foi um dos momentos mais belos do Milhões de Festa 2012, o que só deixa claro que esta estreia estava reservada para Barcelos, desde que os britânicos começaram a tocar há cinco anos. AF

Se por esta altura se andava pelo recinto de alguma forma atarantado pela explosão de som dos franceses – que agarrou largas centenas de espectadores – mal sabíamos nós o que vinha ali ao virar da esquina no palco Vice. Os Gnod e os Black Bombaim, sob o nome de Black Gnod, preparavam-se para construir e devastar uma montanha sonora de proporções épicas que causou danos auditivos permanentes um pouco por todo Barcelos.

Como mandam as regras de uma boa jam, a música começou lenta, quase subsónica, em autêntica construção textural e em fase de conhecimento. Mas sempre que os Black Bombaim se arriscavam a pegar nas rédeas – Tojó foi um verdadeiro alicerce motriz – a viagem tornava-se verdadeiramente vertiginosa e sublevadora, com direito a guitarras em espiral, bateria teutónica (a batida motorik foi uma constante) e vilipendiosa. Alturas houve em que o caos parecia ser a ordem que se impunha, mas fechar os olhos era o exercício que bastava para encontrar essa linha guia que eram os sintetizadores e os ruídos que saíam disparados directamente para a membrana timpanal, frágil e pouco douta perante tal manancial poli-rítmico e demonstração de peso. Foi uma autêntica patada na boca, verdadeiro banho de ácidos para a mente, trip única e irrepetível que desejo com todas as forças que venha a ver a luz do dia sob a forma gravação obscura, pouco polida e maléfica.

Mal recuperado da avalanche sonora dos Black Gnod, foi difícil digerir o valente concerto que os Red Fang estavam a dar no Palco Milhões. Com o corpo e a mente ainda perdidos na labirintite criada pelo concerto anterior, pouco restou senão prostrar-me em frente ao palco e absorver as malhas directas com a dose certa de peso, balanço e barba dos americanos.

Reza a crónica que aquando do concerto de primeira parte para os Mastodon foram muitos os que se renderam à força, alegria e ambição dos Red Fang e em Barcelos a história não foi diferente. Agraciado pelo empenho e alegria da banda, o ambiente não tardou a virar festa de constante reboliço. De Wires a Pre-Historic Dog percorreu-se uma carreira há muito validada pela boa disposição e química que o quarteto evidencia no cimo de um palco, com direito a crowdsurfing, mosh pit e muitas ovações de respeito. Ficou talvez a faltar um elemento de festa mais presente, orelhudo e óbvio, que aqui acabou por desaparecer em detrimento do peso puro e duro. Mas a alegria de os ver e ouvir tocar, essa ninguém lhes tira.

E se neste último dia estava a faltar a festa ao Milhões de Festa, os Discotexas Band resolveram este pequeno problema com classe e muito pouca subtileza. Apenas e só porque o estalhardaço disco do colectivo liderado pela electrizante Da Chick entrou com tudo, deixando bem claro que estavam ali para partir tudo a dançar e levar toda a gente com eles. O ambiente noctívago, de clubbing, adensou e tomou conta do Palco Vice, acabando por compensar a desilusão que havia sido o concerto de Publicist. Ouviram-se por ali malhas de Cramps e Moullinex convertidas em disco-funk de primeira apanha, daquele que faz o corpo soltar-se das amarras do cansaço, esquecer tudo o resto e entregar-se aos prazeres da celebração. AMS

O final do festival, para o PA’, esteve entre o divertido e estranhíssimo. Mas enquanto se lutava contra o cansaço, fingia que se dançava tanto quanto as cinco pessoas de Shangaan Electro, todas elas super-alegres, positivas e a actuar como quem diz “o último dia do Milhões é quando nós quisermos que seja.” Cedo se tornou difícil de resistir ao som de marimba processada com batidas quase 8bit e os primeiros sinais da febre africana que se propagou a partir do palco Vice começaram a notar-se no comboio com pessoas do público, nas dezenas de danças absurdas e, claro, no estrado, onde os sorrisos não paravam de chegar e onde o soar escorria em bica com tanto alvoroço.

Ficou decidido que o melhor seria aproveitar o balanço e ir para a tenda. O verão tinha oficialmente acabado, ainda que o sol estivesse prestes a nascer. Não estamos a ser negativos, estamos só a fazer as contas como têm de ser feitas: o Milhões de Festa provou, definitivamente, que é o melhor festival de verão, não apenas porque o espaço e a cidade de Barcelos são óptimos para o receber, mas porque o cartaz, esse, é um dos maiores desafios em Portugal. Não há cartadas ganhas à partida, além de alguns headliners; não há patrocinadores a assegurar nada e a poluir o espaço visual.

O Milhões de Festa é sempre um risco e é nisso que nos arrebata. Só assim poderíamos ter ido ver Alt-J sem saber como os britânicos iam transformar o seu disco em concerto; só assim nos sujeitaríamos a curtir Weedeater depois de adorar Gala Drop; só assim faríamos um mosh pit em Red Fang depois de viajar pelo tempo e pelo espaço com Black Gnod; ou mesmo dançar comMoullinex, Xinobi e Da Chick na piscina depois de osRevengeance terem arrancado alguma relva figurativa.

O Milhões é onde o improvável acontece e onde tudo acaba por correr bem. Desculpem-nos os outros festivais, mas o verão acabou. Vamos preparar a rentrée. AF