E eis que chegávamos ao último dia do Milhões. Em géneros, os três dias viriam a traduzir-se em qualquer coisa como 40 horas de concerto para toda a gente e uma média de meio barril de cerveja, dois escaldões, gente gira a rodos (as meninas de Pega Monstrotêm alguma razão, que as miúdas do Porto são mais giras), três frases épico-míticas e uma história para contar aos netos. AMS
Como explicámos ontem, depois da primeira experiência, desistimos de nos dedicar ao safari que era chegar ao Palco Lovers & Lollypops. Por isso, perdidos os concertos de Torto, Old Gun, Equations e Granada, o dia, entre ressacas e cansaços, começou na piscina. Banheira dourada essa que, contudo, estaria virada de pernas para o ar. É que os horários das actuações, a sua ordem e agentes foram aqui completamente alterados.
As Kim Ki O e os MKRNI viram, finalmente, mas no domingo, a sua bagagem chegar do aeroporto e, como tal, brindaram-nos com a graça das suas actuações, mas causando as tais mudanças piscineiras. E se os primeiros potenciaram momentos de relaxamento quase etéreo, banhado a tons de psicadelismo – a piscina revelou-se um óptimo habitat para a dupla de meninas – electrónico, os segundos também deixaram marcas bonitas nas nossas memórias.
Os MKRNI fazem música quase caribenha, quase latina, mas alicerçada em tijolos rock, às vezes avant-garde e experimental. Escusado será dizer que, ao ouvir os Macaroni (em discurso completo), imaginámos, imediatamente, pequenas palmeiras e um estilo muito Las Vegas, enquanto fumávamos, deitados na relva, umas belas brocas. Obviamente, que, em virtude do que afirmámos na frase anterior, as nossas memórias bonitas podem dever-se a outras coisas que não à música destes senhores, pelo que solicitamos que, caso assim seja, nos comuniquem. Obrigada. ABR
Continuando nesta saga, e quando as saudades já começavam a assolar-nos o âmago profundo, os sintetizadores dos Narwhal, trippy quanto baste, alimentaram os ares da piscina com as suas ondas sonoras espaciais e as suas vocalizações ecoantes. Servindo até mais como música de fundo, do que como um verdadeiro concerto, os Narwhal cumpriram a sua missão.
Os seus sucessores Nazka, compatriotas chilentos, também preferiram apontar as suas baterias em direcção ao outerspace. Com um som também ele bem espacial, com uma guitarra embrenhada em balanços electrónico-ambientais, os Nazka aproveitaram a oportunidade para dar um dos gigs que mais se coadunou com o espírito da piscina. EP
O dia seria longo na piscina, tão longo quanto nos pareceu o concerto das Pega Monstro. Ok, pessoal, já percebemos que estas meninas têm piada. E, acedemos, têm alguns pormenores na guitarra quase interessantes. Só que o lol-fi é uma piada e, musicalmente, se tentarmos extrair algo daquele “concerto”, não há muito a sair. O factor diversão, as letras inocentes, mordazes até, são pontos de atenção, mas pouco ou nada mais que isso.
Depois, permitam-me: gostar de B Fachada ou elogiar o seu aspecto físico é, desde logo, um major big fail. ABR
Sem mais demoras, a última actuação que vimos neste “palco prazeiroso” (saímos sem ouvir os Disco Texas e os Secousse, porque a hora já ia avançada), pela mão dos Larkin, saiu com o título de campeã da piscina. O punk bem Refused e At The Drive In, misturado com a energia do vocalista Nuno Teles, proporcionou um concerto imponente, com direito até a aula de hidroginástica. Munindo-se de uma energia incessante, os Larkin souberam usar a sua oportunidade e, com novo álbum já lançado, prometem continuar a criar o seu espaço na cena nacional. EP
Por aí, e já pelo recinto principal, apregoava-se que os Dear Telephone são uma banda pop, esse belíssimo rótulo tão vasto e abrangente que é extremamente redutor. É que a banda bracarense é pop, mas sem ser pop. Nós explicamos: a alegria da boa pop está lá, a admiração por nomes “ambíguos” também – ouviram a cover de West End Girls, dos Pet Shop Boys? -, mas osDear Telephone também mostraram ser capazes de captar as atmosferas e sensibilidades do post-rock sem dificuldades e com uma excelente voz a comandar as hostes. Posto isto, que tivemos nós? Um concerto que podia ter sido mais íntimo e que começou cedo demais.
Ainda antes do concerto de Throes com Shine, no palco Vice, pensava para com os meus botões que o final do Milhões e de três dias em Barcelos era o equivalente ao acordar de manhã pelo despertador e dizer “foda-se, mais cinco minutos e já vou, agora estou muito bem a dormir”. Mas depois lembramo-nos daquela coisa que os velhos do Restelo e afins dizem com sabedoria: “o que é bom, acaba depressa”. Mas enquanto não acaba, é melhor aproveitar.
Ora, para quem não sabe, Throes são rock, Shine são kuduro. Juntos, dão uma espécie de cocktail molotov dançável ao qual, muito apropriadamente, chamam de rockduro. E caralho, se o rockduro não for a melhor cena a seguir ao papel higiénico, então não sei o que será! Os Throes são dois, mas fazem barulho por cinco ou seis: uma guitarra, uma bateria e um sintetizador (seria?) chegam para construir um terreno estranhamente fértil para a dupla The Shine debitar as rimas tipicamente certeiras do kuduro. Na vossa cabeça soa mal, mas em palco é explosivo. Soube a pouco pelo pouco público, dançou-se menos do que se devia porque o sol ainda ia alto. Dêem-lhes um concerto à noite e vão ver…
Ali ao lado, alguém dizia que os Papa Topo iam animar a coisa e o certo é que se eu soubesse o que sei hoje, mandava-o ter juízo. Ok, os Papa Topo não são a pior banda do mundo – esses tocam em Vila Real daqui a uns dias – e azar dos azares tiveram problemas com o som. Mas a ingenuidade infantil daquela twee-pop não nos agarra. São fofos e doces, mas demais. E o que é demais… AMS
Houve momentos, neste Milhões de Festa, em que parecia estarmos num ginásio. Celulite a abanar, papos a abundar, homens peludos a suar, instrutores a avacalhar… mas, com música boa, é certo (pensemos nas aulas dos Larkin ou dos Mr. Miyagi na piscina). Quando aterrei no palco Vice, por erro [fui ao recinto de propósito para ver We Trust, mas os atrasos lixaram os horários dos concertos], imaginei-me mesmo num ginásio: um vocalista a “obrigar” pessoas a dançar, num registo muito pessoal; uma multidão concentradíssima e unificada em estilo sociedade de massas (obrigada, Teoria Hipodérmica e obrigada, Paulo Futre); toalhas aos ombros; corações ao alto e olhos em riste para o palco. Musicalmente? Acho que só me lembro de uma electrónica engraçada, de uma cover dos Rage Against The Machine (que, na altura, dado o meu cansaço e falta de cerébro, nem identifiquei imediatamente o que estava a ouvir – agradeço a dica do Paulo André Cecílio) e de me rir com o Pump Up The Jam. Porque, sim, uma pessoa parava e colava a olhar para o cenário que o público e os FM Belfast montaram. ABR
Dos We Trust, tem-se escrito tudo e mais alguma coisa. A banda de André Tentugal anda a dar música à alta-moda e estreou-se num palco, num palco principal e num festival – três de uma vez! Para uma primeira vez não foi mau e, para além do extremo bom gosto da banda, ficou notório que há hype, mas que este vai para além de Time (Better Not Stop). AMS
Enquanto isso, além-rio e ao mesmo tempo que o sol se escondia atrás dos montes barcelenses, os Löbo foram os senhores responsáveis pela maior enchente do palco SWR durante o festival. Os setubalenses arrastaram os presentes para meia hora daquilo em que são pródigos: um drone/doom fortificado por raízes electrónicas, que se coadunou perfeitamente com a localização do palco. A actuação do colectivo, entre as muralhas da cidade, sob um céu que escurecia a cada powerchord, acabou por se revelar um dos pontos altos do último dia do Milhões de Festa. Para isso, decerto terá contribuído a maior coesão deste novo line-up, que se mostrou uns passos à frente do concerto dado em Lisboa há mais de um mês, na primeira parte dos Long Distance Calling. EP
Banho tomado, estômago coberto, roupa lavada e estamos prontos para ir ao velório seguido de enterro dos Green Machine. Sem perder tempo e a entrar a todo o gás, era hora de se fazerem os últimos cânticos e homenagens à banda e a Barcelos. Tales of an Unexpected Pussylicker foi o ponto alto de um concerto irreverente, e que uniu os pontos entre o punk e o rockabilly, sem esquecer Kyuss ou Screaming Jay Hawkins. Ah, e cheio de mosh, crowdsurf e suor. ‘Green Machine is Fucking Dead’, foi a frase que ficou no cair do último pano de uma banda que despoleta desejo sexual e acaba com a inércia em terras pequenas. Alguém viu osGlockenwise no crowdsurfing a bater continência à banda? Foi bonito. AMS
As Electrelane eram donas do ministério mais relevante do festival, com a pasta de “headliners”. Realmente, até elas se mostraram entusiasmadas com isso, porque, reza a história, este brilhantismo singular era, até então, ímpar na sua carreira. A multidão chegou-se perto do Palco Milhões e, durante uma hora, ouviu-se muito rock cru e directo, sem as falinhas mansas pop, sonhadoras e doces que também povoam os seus discos. Por entre um alinhamento variado, a contemplar os quatro álbuns das britânicas, o público foi reagindo bem – em apoteose, ainda assim, na conhecidíssima To The East, cantada a meio da actuação.
Em jeito de mea culpa, confessamos que não nos apeteceu muito levantar da relva, no anfiteatro, para ir ouvir Star Slinger. Queríamos estar em máxima força para ouvir, sem cicerone, o vício denominado Washed Out. Ainda assim, lá nos arrastámos durante breves segundos e percebemos que uma espécie de festa electrónica, com muita gente a divertir-se, era mote para elevações no Palco Vice. O produtor britânico, depois de ter passado por Coimbra, em Maio, voltou a conseguir a proeza de ter centenas de devotos consigo.
Contudo, se soubéssemos o que sabemos hoje, teríamos aproveitado a dobrar o concerto de Star Slinger. É que a actuação de Washed Out foi um verdadeiro balde de água fria. Ou melhor, glaciar. Sejamos honestos: tínhamos consciência, de antemão, de que as canções de Within And Without ao vivo, pela sua orgânica, nunca poderiam soar como em disco. Só que o nosso lado irracional queria, mesmo assim, ter um trago dessa água sagrada, em concerto, daí ter-se desiludido. Não se pode dizer que a actuação tenha sido má – Ernest Greene passeou pelos seus ep’s anteriores, trouxe a sua banda e conferiu um cariz mais chillwave, mais lo-fi e mais synth-pop aos seus temas. Porém, o brilhantismo que, por exemplo, Amor Fati carrega no disco não consegue aproximar-se ao que ouvimos, naquela noite, em Barcelos. ABR
Na sempre apetecível categoria de “o que caralho foi aquilo”, e já depois de Shit & Shine e em certa medida de Zu, estiveram osFoot Village. E o que são – não quem – os Foot Village? Uma onda demolidora de percussão, muito basicamente. Ok, dito assim até parece fácil de conceber, mas isto em palco tem muito que se lhe diga. Quatro pessoas (aqui dispostas em círculos), quatro baterias, oito baquetas, duas vozes a berrar. Para eles, a musicalidade é para os meninos. O que importa aqui é a constante e crua batida tribal, pejada de gritos hardcore convulsos (a vocalista, tão pequena e já tão furiosa) e que acaba por resultar tal e qual um violento soco no estômago. Valeu!
Se a memória não me falha, Jimi Hendrix morreu sem deixar descendentes conhecidos e, matematicamente falando, é impossível que Parker Griggs – o senhor faz tudo nos Radio Moscow, mas que em palco “só” toca guitarra de forma orgástica e canta como os homens do blues a sério – seja filho dele. Isso só nos deixa duas hipóteses: ou este rapaz é incrivelmente dotado, ou o espírito do Jimi Hendrix foi canalizado para o corpo dele (um bocado como aqueles velhinhos fazem no “Queres ser John Malkovich?”). Parece-nos óbvio que a segunda hipótese é a correcta. É que só assim Parker Griggs pode curtir o rock (e vestir-se) como se fosse 1970 e fazer-nos acreditar que, durante duas horas, estamos em Woodstock. O riff foi constante, escorreito e certeiro, e a secção rítmica foi absurdamente, inacreditavelmente, incrivelmente contagiante. Que é como quem diz: eles fazem música capaz de pôr o mais emperdenido dos homens emocionado e um tipo com problemas nos joelhos dançar desalmadamente. Com eles, os Led Zeppelin nunca acabaram, Jimi Hendrix nunca desapareceu e o blues é o estilo da moda – aquele turbilhão de acordes… Mistreated Queen é malhão aqui e na China e ainda sabe melhor quando é precedido de um “vemo-nos ainda este ano”. Para o ano, fica uma ideia: um duelo épico entre Graveyarde Radio Moscow.
Contas feitas, sobravam os Comanechi, também eles da armada chilena. Rock sem merdas – ou punk sem merdas –, riff pelo riff e encabeçados por uma enérgica vocalista que gosta de estar em palco. Em Barcelos, deparou-se com um público tão ou mais enérgico do que ela, pelo que o fecho do Milhões surpreendeu mais pela vontade de esticar a festa patente na euforia ali sentida do que pelos Comanechi em si. Dito isto, a vénia final destes que vos escrevem vai para vocês que estiveram sempre lá. Nós, se pudéssemos, ainda lá estávamos. AMS