No segundo dia, ficavam dois pontos assentes sobre o Milhões de Festa. Número um: este é um festival para duros. Duros como o Chuck Norris ou o Conan, o Bárbaro. Com concertos das duas da tarde às 8 da manhã, regados a cerveja e outras coisas bonitas, a sanidade mental podia ficar em causa e o corpo podia começar a tomar decisões de forma aleatória e independente. Número dois: eram 74 bandas e projectos a tocar em cinco palcos e ruas de Barcelos. Ver tudo e mais alguma coisa implicava ter poderes semelhantes aos de Jesus Cristo e Son Goku, os dois únicos seres humanos capazes de levitar e tele-transportarem-se de uma lado para o outro. AMS
Quem, não obstante, reinou com o seu poder, durante os três dias do evento, foram os atrasos. Algo que não tinha acontecido no ano passado e que potenciou alguns momentos menos positivos em milhões de aspectos. Ou seja, os Traumático Desmame, que iam abrir as hostilidades do dia 23, não foram excepção, dando início à sua actuação, na piscina, com mais de uma hora de atraso. Este trio português, sob um sol agressivo e durante meia-hora de um noise bem tripado e lento, criou um ambiente estranho, onde houve espaço até para bolas de sabão, expelidas pelo vocalista João Gama, a preencher os momentos em que não gritava estridentemente. De realçar também as várias garrafas de Casal Garcia no palco, a compor um ramalhete sui generis. EP
Quase a parecer a Praia da Caparica em Agosto, a piscina ia enchendo a olhos vistos, com filas intermináveis – os seguranças gostavam de perder tempo a ver as malas das meninas, bem como de nos gamar protectores solar. Os MKRNI, com medo disto, nem apareceram… Ahhh, brincamos, calma. Eles, que haviam de actuar no dia seguinte, dado a problemas com a sua bagagem, criaram um hiato temporal, que foi aproveitado pelos Mr. Miyagi. ABR
Ainda os vianenses nem tinham começado o concerto e não era difícil de antever que o grupo minhoto iria transformar a piscina num ringue de batalha. E, pronto, demorou pouco tempo a que houvesse mergulhos em série para a piscina, um mini circle pit com direito a várias escorregadelas e um Ciso a querer subir até para a série de colunas dispostas em frente ao palco. Pelo meio, ainda houve tempo para ouvir um bocadinho de Iron Man de Black Sabbath. Foi Mr. Miyagi e isso chegou para dar um dos melhores concertos da piscina durante o festival. EP
Logo a seguir (dando sempre desconto ao respectivo atraso), e em extremos, chegaram-nos os Long Way To Alaska. Os bracarenses foram um belo momento chill-out, naquela altura em que o céu vai parecendo um quadro vivo, guiando-nos pela sua pop fofinha e delicada, mas repleta de finíssimos e pensados pormenores. Como seria de esperar, Eastriver, o LP editado em finais do ano passado, esteve em destaque, enquanto nos despedíamos da piscina (não curtimos com o DJ Fitz), para irmos a correr para o recinto.
Provavelmente, estão a ler isto e a pensar: ‘o que é que aconteceu aos concertos do palco Lovers & Lollypops?’. A resposta, caríssimos leitores, é simples – aquilo era longe como tudo, quente como tudo e nós somos pessoas sedentárias como tudo. Ou seja, e perdoem-nos o Filho da Mãe, os Indignu, os Equations, os Karma To Burn, a Bikini Beach Band, os Torto, os Old Gun e o André Granada, mas, depois da exploração BBC Vida Selvagem no primeiro dia, decidimos abandonar, de vez, o Palco L&L, para nunca mais lá voltar. ABR
Dito isto, ficámos com muita pena de não ter visto os LSD Mossel (e toda a restante panóplia do Chungwave – diz, quem viu, que os The Macaques foram reis) em nenhum dos dez concertos que eles deram. Tivémos de nos contentar com os “novos” Tigrala (isto é uma ironia), que agora interpretam a espiritualidade do Vanuatu ao Timbuctu com guitarras ligadas à corrente e uma percussão omnipresente. Longe da calmia acústica que lhes vimos no primeiro disco, o trio luso-mexicano opta agora por trilhar caminhos já percorridos por outras bandas e que só não cai na banalidade porque Norberto Lobo é um mago alimentado a electricidade e Ian Carlos Mendoza abarca de kazoos a pratos e bombos. AMS
As Kim Ki O também cancelaram, porque queriam tocar no dia seguinte, na piscina (somos pessoas engraçadas, na verdade, a banda também teve problemas com a sua bagagem). E não nos esquecemos dos MillionYoung, mas achámos que a abertura do recinto principal deveria ser relembrada por algo mais que uma electro-pop igual a tantas outras. ABR
É que, bem vistas as coisas, os Tigrala souberam abrir o apetite para os mestres Causa Sui. Estes dinamarqueses que adoram o deserto e fazem música que pede um alheamento à base de substâncias eram das bandas mais esperadas do festival e a expectativa era tão palpável como visível. Ainda não eram oito da tarde e já eram várias as centenas de pessoas que estavam por ali sentados, à espera que o quarteto chegasse ao palco. E quando chegaram, com um pôr-de-sol tão laranja como num quadro expressionista ficámos… desarmados. Tudo parece fácil e fluido, tudo parece uma jam orquestrada milimetricamente, com as cordas e as teclas a destacarem-se por cima de uma bateria que marcava o passo perante uma alucinante viagem a um deserto psicotrópico. Alturas houve em que o volume podia ter estado mais alto, mas regra geral valeu a pena estar ali sentado, à sombra, de olhos fechados, a viajar com a banda. Que se podia pedir mais? Mais uma hora de concerto, com stoner-rock tocado como mandam as regras: sem palavras ocas, sem artifícios e directos ao hipocampo que nos faz divagar. AMS
Do outro lado do rio, os We Are The Damned tinham um concerto inicialmente previsto para as 20:30, mas acabaram por tocar uma hora antes. Com Mike Ghost surpreendentemente numa das guitarras, a banda portuguesa deu um concerto bem ao seu estilo, rápido e agressivo, com Ricardo Correia a tentar criar tensão e uma atmosfera mais favorável ao desenrolar da performance – vários foram os pedidos para que os que estavam sentados na esplanada se levantassem. Como não poderia deixar de ser, houve ainda espaço para Into the Crypt of Rays dos Celtic Frost (desta vez sem Nocturnus Horrendus), num gig onde Ghost conferiu uma dose extra de violência sonora. EP
Que dizer da actuação dos Kafka? Que dizer, aliás, de uma das mais atraentes e magnéticas identidades do rock nacional (e não só barcelense)? Há muita coisa boa que se pode dizer do rock negro e introspectivo dos barcelenses e que nesta edição do Milhões foi ressuscitado da melhor forma. O concerto teve tanto de assombroso como assombrador, o que acabou por criar uma atmosfera digna de filme de terror. Aquele tipo de filme de terror que, em putos, nos causa calafrios, mas nos atrai e nos faz querer ver até ao fim. Com a cadência marcial “emprestada” aos Current 93 e a atitude bem familiar dos Mão Morta (referências que servem apenas para dar uma ideia e de que O Corpo de Hitler é o melhor exemplo), os Kafka arrancaram uma das melhores prestações do dia naquele palco – e a mais “intelectual”, fruto das projecções vintage e um espírito teutónico bem presente – e que culminou com um crowdsurf bem prolongado do vocalista. Valeu a pena e esperemos que o regresso se prolongue muito tempo. AMS
Depois de quase uma hora de atraso devido a problemas técnicos, os Anti-Pop Consortium lá entraram no palco para um concerto de bom nível. Formado em 1997, o trio mostrou que, afinal, há muito que se faz aquilo que Tyler The Creator e restante Wolf Gang têm mostrado recentemente, com um hip-hop sombrio, pouco dado a ritmos constantes e com beats bastante pesados. Não admira que muitos tenham sido aqueles que foram congratular os três músicos enquanto estes vagueavam pelo recinto, já depois da actuação – é que os Antipop Consortium, tal como os Gama Bomb, não se importaram em nada por estar num cartaz longe do seu estilo e acabaram por sair vitoriosos. EP
Para o concerto das Vivian Girls, confessamos que a paciência e as expectativas já não eram muitas – por cá, nenhum de nós é particular consumidor dos discos destas meninas – e Share The Joy soa-nos pior do que nos soaria algo se a Whigfield decidisse reinventar os Monotonix. Mas, bolas, nunca imaginámos um concerto tão mau, graças aos vocais nasalados de Cassie Ramone. Porque, a bem da verdade, o trio de Brooklyn – esse imaginário que tanto prezamos – conseguiu óptimos (mas raros) momentos instrumentais, nos quais as guitarras se cruzavam em amor, comunicando numa língua própria com o baixo. Só que a ânsia de se venerar o girl rrioot (até o girl power, aqui, seria melhor, a sério), o hipster cenas, o lo-fi e essa quantidade de coisas que a malta dos óculos quadrados defende não significa nada se não for merecida e talentosa.
A partir de agora, viria a melhor, inexplicável sequência de todo o festival (mais uma vez, os quatro somos unânimes na inclusão dos concertos de Zu, Secret Chiefs 3 e Bob Log III no nosso top de actuações barcelenses). ABR
No palco Vice, e com um novo baterista, os italianos Zu pareceram pouco preocupados em apresentar um concerto típico. Em vez de actuarem com base na sua discografia, os Zu ofereceram quase uma hora de um jam bem cáustico e agressivo, onde o saxofone soou a trovão e onde o baixo e bateria foram puros martelos pneumáticos, que, ora mergulhavam no vale do drone, ora atingiam o cume da velocidade dopada. Naquela que foi também uma das melhores performances de todo o festival, o trio italiano deixou marcas profundas numa plateia que se entregou por completo à demência que os Zu tantam gostam de desferir.
Ter uns Secret Chiefs 3 logo a seguir a Zu não é para qualquer festival. O grupo de Trey Spruance voltou a mostrar toda a qualidade que lhe é reconhecida, fazendo com o que público entrasse madrugada adentro ao som de toda aquela amálgama saborosa, que atravessa por completo o Médio Oriente, não se esquecendo de África e até da Ásia mais distante. A qualidade instrumental é inegável, nunca relegando para segundo plano o peso, que se torna sempre parte imprescendível de um gig de Secret Chiefs 3. Se já é sabido que a banda funciona bem em espaços fechados, em aura de festival não só não perdem, como provavelmente até ganham. São únicos e, no seu estilo, jogam num campeonato singular. EP
Bob Log, the third, não tem dinastia. E este norte-americano, sim, joga num campeonato singular (adoro roubar-te palavras, excelso Emanuel): de capacete na cabeça, lo-fi a sério (meninas cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado, se estiverem a ler isto, vão aprender com quem é devido), como se tivesse engolido um ácido aos sopetões, o homem está ali a curtir a sua cenita. A nós, resta-nos curtir com ele e com as aditivas camadas de puro rock’n’roll do verdadeiro one-man-band, sem paralelo. Ora garage, ora blues, sempre excitante e proeminente, a actuação de Bob Log III fez-nos pensar como é que aqueles dedos, fingerpickers, aguentam (ou como é que as suas pernas aguentaram com a Daniela e com a sua amiga em I Want To Shit On My Leg). ABR
Se as meninas Vivian Girls acinzentaram a disposição geral do festival, os britânicos Man Like Me trataram de colorir Barcelos em larga escala. A questão que se impõe em relação a esta rapaziada com tiques de boysband em ácidos, inspirada pelo acid-house que começou a brotar um pouco por toda a Bretanha nos anos 90 é: será que eles se levam a sério? Provavelmente não, e ainda bem. Só a encarar a música com leveza é que é possível levar para palco dois tipos que fazem daqueles jogos de palminha coreografados mas também tocam trompete, um vocalista que toca de toalha à cintura e fazer alguma da mais bem disposta pop que se ouviu por aí. Os mais resistentes pularam e dançaram e estoiraram as últimas baterias. Os ainda mais resistentes, foram para o Palco Vice a seguir curtir os Matanza.
Pertencentes à propalada “armada chilena” que povoou o cartaz do Milhões de Festa em 2011, os Matanza são o sonho molhado do freak que pára sempre perante os índios que tocam “música étnica” nas festas da cidade. Flauta de pan sob batida electrónica (aquilo é techno) que moveu curiosos que acabaram convertidos e a pular (ou algo parecido, a hora não dava para muito) como se não houvesse amanhã. A questão, com estes rapazes, é: porque é que não tocaram a My Heart Will Go On, um clássico sempre que é interpretado em pan pipe? AMS