Tão idílico quanto onírico, o recinto do festival que por esta altura já foi falado e propalado e toda a gente conhece é em si um palco gigante e um excelente cenário – tão improvisado como pensado – para um acontecimento que agrada tanto ao freak porco como ao hipster germofóbico. AMS
Acima de tudo, o Milhões de Festa é um estado de espírito: chegar a Barcelos é como inspirar mais um bocadinho, depois de um hiato no nosso sistema respiratório, durante doze meses. Ao longo de tudo o ano, fomos sustendo a respiração a tragos, para sorver, de uma só vez, todo o amor, toda a música, toda a água da piscina, toda a celebração de milhares de pessoas devotas à melodia. E conseguimos.
Numa sexta-feira quase surreal, e após algumas trocas e baldrocas na zona de acreditação, o início da tarde barcelense foi algo confusa para a equipa PA’, dividida entre o doce piscineiro, o pó da “praia” junto ao rio Cávado e a luta corpo-a-corpo com as tendas do campismo (para os interessados, venceram os últimos, claro). Com isto, perdemos o concerto dos Hill, mas conseguimos ouvir a primeira das pratas da casa: os Black Bombaim, que, desta feita, tornaram o seu stoner quase veraneante, entre os lados A e B que compõem o seu mais recente disco, Saturdays & Space Travels.
Os Hayvanlar Alemi continuaram a vaga de chinelo no pé, e entre bóias e afundanços na piscina, lá fomos ouvindo o seu pós-rock com tragos psicadélicos. A sua lambada turca em versão rock conseguiu trazer-nos à tona e fazer-nos captar atenções numa banda que, não tendo descoberto a pólvora, tem muito rastilho por onde se pegar num futuro próximo.
Vindos de um Super Bock Super Rock em altas, os The Glockenwise fizeram-se ressalvar pela atitude, antes da música. Alguém já viu túnicas tão lindas como as deles? Apostamos que as senhoras do mercado de quinta-feira fizeram bons negócios com os meninos. Mas, fora de brincadeiras, a rodagem que os barcelenses trazem nas pernas, pela digressão que Building Waves, resultou em grande músculo e em grandes ondas piscineiras (era esta fácil, nós sabemos). Apesar de não terem sido beneficiados com o som, nota-se uma grande evolução em termos instrumentais e até em termos vocais (you go, Nuno!), numa fase em que o grupo se prepara para dizer um Goodbye temporário aos palcos.
Como já dissémos oportunamente, um dia deixamos os Glockenwise ou os Black Bombaim tomarem conta das nossas reportagens, mas, enquanto esse dia não chega, decidimos ir espreitar o Palco Lovers & Lollypops, onde Blac Koyote teria acabado, há instantes, a sua actuação. Com pena, perdemos, então, a actuação de José Alberto Gomes – que integrou, recentemente, a PAD dos Dear Telephone -, mas sabemos que a recomendável experimentação da sua música não combinava com aquele cenário à beira-rio plantado. Recordemos, com amor, os minutos que guardamos na memória do seu concerto no portuense Café Au Lait.
Para não recordar, em contraste, ficaram as sinapses que nos ocorreram junto ao rio Cávado. Foda-se, que calor, que tosta, que incêndio, que labaredas enormes (ok, já perceberam a ideia)… Se lhe juntarmos o pó (alguém tinha saudades do SuperBock SuperRock?), o difícil acesso, a raríssima sinalização, a falta de alimentação e de wc’s, podemos, em plena consciência, afirmar que o palco “praia” foi um flop. Fua, nós adoramos o Milhões, mas por favor, queremos adorar-te ainda mais como deus e guru espiritual – trata-me destas merdas para o ano, ok?
Quem deveria andar a maldizer mais ou menos o mesmo que nós era João Pimenta, dos Botswana. Em terríveis condições sonoras – sim, essa soma-se à lista das vicissitudes do palco L&L -, o colectivo portuense, agora sem Sofia Magalhães no baixo, desfilou o seu garage, ora rock, ora punk, que caracteriza Attila Atlas, o EP de estreia. A multidão que ainda se juntou, numa fase mais inicial, parecia estar a aderir e a vibrar com a pose e a entrega sui generis do energético vocalista, que esperneava e mexia-se, mexia-se, mexia-se, qual coelho da Duracell. ABR
Ainda com o rio como pano de fundo, o longínquo e grauito palco Lovers & Lollypops serviu de abrigo ao concerto de Alex Zhang Hungtai, que é como quem diz Dirty Beaches. Gente para o ver havia pouca, sol tórrido havia muito e a cerveja aquecia em dois minutos. O sacrifício parecia grande, mas valeu a pena. Alex Hungtai é aquilo que se apelida de personagem: a brilhantina, a manga cava e os sapatos castanhos que pareciam retirados ao cadáver de Elvis Presley davam-lhe um ar que dizia tanto aos heróis dos filmes série Z de kung-fu como a um mortífero chefe de sushi. A música, essa que interessa, assentava em doces camadas de reverb e embalava-nos numa trip psicótica que assentava em cheio no tempo quente. Com batidas em loop no fundo e uma guitarra tocada como se de punk joy divisiano (sempre eles) se tratasse, Alex Hungtai deu um belíssimo mote para o primeiro dia. AMS
Deixámos o senhor da Taiwan a cantar para os outros e fomos estrear o Palco Vice, onde os Riding Pânico, a banda talismã do Milhões de Festa, inaugurava o recinto principal do festival. Com surpresa, apercebemos-nos da ausência de Mike Ghost (ele que actuou com outra banda, no dia seguinte, mas já lá vamos), assim que o grupo nacional entrou em cena. Sem nunca atingir um patamar de grande nível, os Riding Pânico conseguiram um concerto sólido, com Chris Common, ex-baterista dos These Arms Are Snakes, a confirmar todas as suas credenciais, mostrando-se o ponto forte da actuação da banda lisboeta. E Se A Bela For O Monstro voltou a ser o píncaro dos quarenta minutos de performance, fechando em alta um concerto, onde se notou a ausência do peso do líder dos Men Eater.
Foram os Born a Lion que inauguraram o Palco Milhões, o local principal de todo o festival. Com trinta minutos de um southern bem bluesy, os Born A Lion cumpriram calendário, sem nunca aquecer por aí além as centenas de presentes que os observavam.
Por esta fora, faltava apenas estrear o Palco SWR, local destinado às sonoridades mais abrasivas. E quem melhor para o fazer do que os Utopium? Durante 30/40 minutos, os portugueses fizeram o que melhor sabem: um grindcore bem sludgy, que decerto terá sido ouvido do outro lado do rio. Agora com Deris no baixo – ele que, entre outros projectos, é guitarrista de Corpus Christii – e também com a ajuda de João Galrito nos samples. EP
Um dia que se adivinhava longo – todos eles – e esquizofrénico – todos eles. Era fácil perceber isso assim que nos aproximámos do Palco Vice onde os Motornoise iam partindo a boca a todos os que ali estavam. Com um saxofone demoníaco a servir de base ao punk que é punk sem pretensões de ser outra coisa (será que era isto que os Xutos queriam fazer?), os Motornoise lá arrancaram aplausos e chamaram algumas atenções merecidas de pessoas que noutra ocasião nunca os veriam com olhos de ver.
Uma característica que, aliás, revestiu o concerto dos Aethenor (diz-se I-the-nor, afinal). O onanismo abstracto deste super grupo (Daniel O’Sullivan, Krystoffer Rygg, Steve Noble e Stephen O’Malley) tem muitas pretensões e mostrou como se faz na altura de (não) obedecer às regras do drone, do noise, do jazz e da música improvisada. Sem linha orientadora definida ou visível, os Aethenor puseram à nossa frente uma exploração entrópica de sons, devaneios e melodias. Um sentido de liberdade puro, mas que em Barcelos saiu prejudicado pela hora: o sol ia alto e estávamos demasiado acordados. Se fosse à noite, o percurso que os Aethenor traçaram para nós caminharmos tinha sido deliciosamente sinuoso…
Se os Aethenor foram reis do abstracto, os Shit & Shine foram mestres do bizarro. Quatro gajos e uma rapariga num palco, dois com máscaras de coelho e outro vestido como a miudinha aberrante do ‘The Ring’ – se esta fosse na verdade um travesti -, mostraram a vantagem de se ser pirado da tola. Munidos de sintetizadores, vocoders e tudo o que permite modificar a voz até parecer um espírito ectomórfico do além, os Shit & Shine mantiveram um tom drónico/noise durante meia hora que afastou presentes, intrigou entendidos e motivou os especialistas a explicar que era aquilo. Ruído senhor, foi ruído. E quem teve estômago, foi recompensado com uma sessão de kuduro que conseguiu ser tão contagiante como desconcertante. O Milhões, assim, vale a pena. AMS
Parecia ousado colocar uma banda de thrash metal no Milhões de Festa, mas, por outro lado, havia uma boa probabilidade de este concerto terminar em festa. Assim foi. Inicialmente previstos para actuar no palco principal, os irlandeses Gama Bomb acabaram por ser deslocados para o Palco Vice e foi aí que instalaram um moshpit constante, intercalado por falsettos bem humorados, que fizeram rir não só os presentes, como o próprio vocalista. Pelo meio, ainda uma wall of death, mostrando que há sempre espaço para diversificar o cartaz. EP
Sim, com concertos como o de Shit & Shine ou Gama Bomb, o atraso que se ia instalando parecia não chatear ninguém até os Zun Zun Egui terem aparecido no Palco Milhões em vez dosGama Bomb. Ora, estes últimos deram uma tareia de thrash e zombies no Palco Vice, os Zun Zun Egui mostraram porque é que o rótulo world-music consegue ser tão foleiro, enganador e errado como os puristas tantas vezes reclamam. Parentes pobres dos Fool’s Gold, os Zun Zun Egui – que até têm um nome engraçadinho – tentaram ser muitas coisas e provaram ser fiéis aos clichés da música balcânica e judaica, toda ela embrulhada naquilo que de mais sensaborão tem o indie do século XXI. É só esta a herança dos Talking Heads? AMS
Já os Graveyard deram um dos melhores concertos de todo o festival e, provavelmente, o melhor do primeiro dia (a equipa responsável por este texto é unânime neste aspecto, apesar da Bia também piscar o olho aos If Lucy Fell e o António aos Lobster). Estes suecos mostraram que, afinal, não são somente muito bons em disco. Ao vivo, conseguiram chamar toda a gente para a frente do palco principal e confirmaram que o hype que granjeiam desde o lançamento de Hisingen Blues é totalmente merecido. Com um groove cativante, mesclado com calmas passagens blues, os Graveyard serviram um prato cheio de um musculado rock à 70’s, onde faixas como No Good, Mr. Holden e a categórica Hisingen Blues brilharam, aproveitando uma boa qualidade de som e um público claramente rendido aos escandinavos.
Regressados das cinzas, e ainda agora falámos deles acima, os portugueses If Lucy Fell corresponderam às expectativas de quem há muito os queria ver. A intensidade sempre foi uma das características da banda e, quando se viu Makoto a andar sobre as cabeças da multidão quase até à mesa de som, percebeu-se que há muito combustível para fazer o motor dos If Lucy Fellcarburar, com um mathcore à Botch que ainda não perdeu vitalidade. EP
Felizmente o Milhões de Festa é um festival – um acontecimento – em que a droga cai do céu de mãos dadas com grandes concertos. Por isso, o concerto de Liars recompensou a espera ao sol, os Zun Zun Egui e o chão de terra batida que fez as vezes de um colchão durante três noites. O trio transformado em quinteto de palco tem tantos resíduos e fragmentos de Sonic Youth como de Joy Division (eles outra vez?). Há uma atitude estética muito forte, um cuidado quase artsy na apresentação do trabalho (alguém reparou nas roupas imaculadas da banda?), que apesar de lhes ficar bem, acaba por tornar o set intermitente. Foi preciso esperar por Scissor para ver o concerto arrancar verdadeiramente e a voz semi-operática de Angus Andrew nos cair no goto e arrebatar as nossas expectativas. O único senão da grande (enorme!) actuação foi o excesso de graves que brotava do palco. Ainda assim, a memória que fica é a de um concerto denso e intenso, para ser curtido à grande: com a intensidade de um ataque epiléptico do Ian Curtis.
Depois de cervejas, passeios, psicotrópicos, conversa, um tipo que apanhava e lançava estrelas e gente que não se via há algum tempo, a madrugada impunha-nos cansaço e um estado de semi-ebreidade em que estamos dispostos a tudo. No caso, a curtir o power-trio com o nome mais fixe de Portugal, os Veados Com Fome. A atitude de “último concerto da nossa vida” estava escrita na cara da banda, que se atirou de corpo e alma ao público barcelense. O rock com raiva e garra foi o aperitivo ideal para o que vinha a seguir…
Lobster, diz-vos alguma coisa? Pois talvez devesse. Porra, inacreditável. Alguém me cale agora ou o calão vai tomar conta deste texto. A tocar no meio do público, fazem lembrar os Lightning Bolt, mas eles são ainda melhores. Têm entrega, suam como nós, têm electricidade e descarregam-na para o público, tratam os instrumentos por tu, mas violam-nos (e ao público) com a maior crueldade do mundo e a uma velocidade acima do limite legal permitido (e suportado pelos nossos corpos e cérebros). O rock para duros dos Lobster foi a maior e melhor descarga de todo o festival. De tal forma que estas palavras são mero eco de um eco e que a seguir só me lembro de acordar ansioso por ir ver Causa Sui. AMS