Há quem afirme que toda a grande arte provém da tristeza. Talvez. Atrás, ou a seu lado, a fúria não desempenhará um papel menor, então. A obra que Michael Gira foi esculpindo e erguendo ao longo dos últimos trinta anos nasceu da dor, da melancolia, da depressão e de uma cólera que, até aos dias de hoje, se escondem atrás de um sorriso que Gira vai mostrando, a espaços, aos que diante de si petrificam. Tal como um cisne, por detrás dessa aparente beatitude está um volátil temperamento, capaz de ser despoletado por qualquer episódio.
Na Galeria Zé dos Bois, foi um amplificador. Incapaz de suster os ímpetos de uma Oxygen dedilhada nos limites, deu sinais de si e confessou-se, através de soluços, inapto. Enraivecido, Gira berrou, soltou uns palavrões, cortou Oxygen a meio e atirou com alguns dos seus papéis, para logo pedir desculpa pela sua fúria. Ora essa, Michael. Bendito amplificador. Assistir ao descontrolo do senhor dos Swans é como ter acesso à fonte de inspiração que deu origem a inigualáveis temas como Money Is Flesh ou A Screw e, só por isso, já valeu a pena o amplificador ter dado parte fraca. História em tempo real.
Inevitavelmente, e já com o problema técnico resolvido, o ambiente adensou-se e Michael Gira aumentou ainda mais os níveis de intensidade. Com a sua portentosa e singular voz a atingir momentos quase endurecedores, o norte-americano deslindou de escabrosa forma On The Mountain do seu projecto Angels of Light, denominando-a ironicamente de “love song”, e bradou dementemente Promise of Water. Já com o grisalho cabelo banhado em suor, pousou a guitarra, sorriu novamente, confessou a sua atracção por Lisboa, pediu uma cerveja e partiu para God Damn The Sun, o trágico e bucólico cair de pano de The Burning World dos Swans, obrigando a ZDB a uma longa e justa salva de palmas. Há homens assim. Há auras assim. E, no final, resta pensar sobre como é sequer possível que, sozinho, Gira tenha sido tão ou mais intenso do que com Norman Westberg e companhia, na última passagem dos Swans por Portugal.