Como tradição respeitosamente cumprida, tipo de ritual sagrado quase anual, os Melvins voltam à carga com mais um disco – podia-se falar numa espécie de Potlatch, antropologicamente situando, onde todo o trabalho acumulado pela banda é entregue/dado num grande festim a todos os seus fãs e demais. Sendo esse banquete o recente, The Bride Screamed Murder.
O constante fluxo de trabalho da banda de King Buzzo e Dale Crover, bravos resistentes desde que se iniciaram em 1983, certamente faz pensar que a energia devastadora e aterradora demonstrada sobretudo em A Senile Animal (2006) e Nude With Boots (2008) – embora trabalhos mais experimentais, e simultaneamente revivalistas, como o EP Smash The State (2007), ou o mais recente split com Isis (já deste ano), tenham também a sua pujança inquestionável – possa estar a ficar sem combustível.
Independentemente disso, sabemos, desde logo, que quaisquer sejam as tendências hype do momento, ou por mais intragável que se torne e transforme a música cuspida pelo mainstream, os Melvins têm o dom de nos agarrar e salvar, em formas das mais bizarras, com o seu sempre imprevisível sopro sonoro, experiência paradoxalmente tanto caótica como organizadora, dada a quantidade de riffs que na aparência de estarem construídos como de um cut-up à la William Burroughs se tratasse, se revelam construtores de faixas de uma beleza que não é deslumbrada num primeiro relance mas precisa de um confronto sempre directo e visceral.
The Bride Screamed Murder, conscientemente ou não, constrói-se progressivamente sobre camadas e momentos onde o lado mais tradicional dos Melvins com os seus riffs sempre lembrando a fase inicial da banda, sobretudo o magnifico OZMA de 1989 e ainda Houdini (1993), vai dando lugar a momentos dominados e subjugados a algo muito parecido com bandas sonoras obscuras de filmes de suspense não demasiado envolvidos em clichés, ou de um spaghetti-western de qualidade, como se tivesse uma mãozinha do grande Ennio Morricone, sobretudo no apurado e mesclado trabalho de vocalizações, e nas quase danças tribalistas das baterias de Dale Cover e Coady Willis.
É assim desde o pontapé de saída com The Water Glass, onde a bateria ao estilo de parada militar faz o chamamento para todos se prepararem para a batalha sonora dos Melvins, e onde um primeiro trabalho de estranhas vocalizações cumpre a missão de anunciar que banda nascida em Montesano pretende tentar traduzir com uma minúcia filigrana a ferocidade dos gritos dessa noiva em alerta.
As faixas seguintes, Evil New War God, Pig House e I´ll Finish You Off, seguem-lhe o rasto, não num processo mimético, mas numa similaridade apenas de estrutura. Se em Evil New War God se destapa uma toada mística e de uma sensibilidade sobrenatural, em Pig House evidenciam-se reminiscências de Killing Joke, ao mesmo tempo que existe uma homenagem quase evidente a Ennio Morricone. Já em I´ll Finish You Off, uma melodia forte e soturna traz consigo um órgão condutor mais doom, onde Sinatra parece ser evocado, a julgar pelo cantarolar um pouco descompassado.
Entre toda esta mescla, experimentalismo e folia rítmica, que se aguçam apaixonadamente na versão fantasmagórica de My Generation dos The Who, e em PG X 3, uma espécie de cover à banda sonora do filme escrito por Nick Cave, The Proposition, na qual os Melvins inventam a sua versão do que devia ser verdadeiramente uma soundtrack spaghetti, existe ainda tempo para momentos mais, diga-se, com toda a paradoxalidade, tradicionais, conceito aliás bem periférico dos pioneiros de quase todas as sonoridades em voga dentro da “loud guitar oriented music”, seja o stoner, o sludge, o doom, ou mesmo o drone. Começando talvez pelo momento mais forte de The Bride Screamed Murder, Hospital Up, é tempo de, como uma brasa flamejante, dominar todas as doenças que têm afectado as guitarras e dar-lhe uma valente dose penincilinica de riffs esplendorosamente esgalhados, sem claro deixar de parte uma intromissão surpresa com um esguicho de bebop. Electric Flower, faixa de domínio acentuado do baixo, com o seu lado thrash vincado, eInhumanity And Death, tributo ás origens punk-hardcore, completam o ramalhete.
A capa com um menino vestido de pirata, é um espelho de como os Melvins se sentem e transpiram para os ouvintes – não precisam de um look hype; de piercings e tatuagens ultra-maradas; de música super arrastada ou super rápida – têm a noção que as modas absorvem e estupidificam, seguindo assim o seu caminho distinto, o de eternos fedelhos descomprometidos e…piratas desafiadores. Até por isso serão sempre parte de coisa nenhuma, outsiders em estilos onde muitas bandas os têm quase como referência máxima.
The Bride Screamed Murder é uma crónica de uma aventura, que apesar dos níveis elevados apresentados anteriormente em A Senile Animal e Nude With Boots, não concebe limites para a experimentação dentro da sua sonoridade peculiar desenvolvida ao longo de 19 discos de estúdio, sendo este o vigésimo. É obra!, mas que venham mais 20!!!