Aqui, ali, além. Esguias avenidas calcorreando ou a quietude mordendo enquanto o sol sombreia a Paris. À conversa mundana discorrendo ou sob o disléxico silêncio de uma invernal tarde calando. Mora, na enrugada pele de Solal, a incerteza. Não a de feitio perturbante, inquieto. Aquela, a outra, humilde cognome dos sábios.
Sabe monsieur Martial que de linear neste mundo há pouco. O tesouro vive enclausurado na bipolaridade. Rendermo-nos ao choramingo para logo nos entorpecermos à gargalhada. A epidérmica vastidão de sensações faz de nós contraditórios bichos. No seu intervalo, e também nas suas oscilações, surge o jazz solto de Solal.
Entregue ao piano que lhe é seu há tanto, o francês rege-o com desenvoltura. O nosso aprendiz olhar teima na ilusão. Descreve-nos um quadro onde, para ser mestre, bastar-nos-ia sentar ali, sob os sóbrios e lisboetas fios de luz. Solal, enquanto, connosco vai brincando. Assim que de uma composição vislumbra o fim, ergue-se e, virando costas, termina-a como se esta não mais fosse do que uma galhofeira conversa, uma cáustica laracha escrita em partitura. Rimo-nos. Ele, que com o palco dialoga há mais de sessenta anos, percorre-o sem norte agradecendo; de imediato, e sem aguardar que o aplauso sossegue, prossegue a sua mordaz apresentação.
Reside em nós aquela trivial ímpeto de colocarmos em cheque factos biográficos: terá mesmo, este homem adiante, 87 anos? O desembaraço, a argúcia com que à sua música substitui parágrafos e a deixa de rins golpeados em subitâneas trocas gramaticais, fala-nos de um eterno jovem. Contracenante com Miles Davis, Dizzy Gillespie ou Django Reinhardt, mas, em oposição aos seus contemporâneos, jamais seduzido pelos entorpecentes alucinógenos, Martial mantêm intacta a perícia que lhe vale epítetos vários, epítetos maiores.
Terá porventura sido o seu capítulo último em Portugal. Cochicha-se que 2014 o tirará dos palcos – decisão sua. Mas disso, nem plateia, nem ele, detêm absoluta convicção. Na despedida, sorrindo à ovação de pé, ainda rodopiou calcanhares rumo ao seu companheiro de sempre. Fintou-nos. Para o piano não mais foi. Escondeu-se. Quiçá para sempre. Quiçá até breve. Enquanto houver incerteza, haverá Solal.