Caminha-se por Londres como quem caminha na ponta de uma corda, finge-se, finge-se que se gosta, finge-se que se dorme, tropeça-se em soluços de álcool, traçam-se linhas imaginárias de uma manhã que não chega nunca, é um terror endémico, um horror que vem de dentro, que se crava pálido nas gengivas, um torpor, um horror, uma inflamação que se espalha muda, sem enredo, cheia de animaizinhos que me trincam os músculos, que me chupam as vontades, que me dão colheres de xarope à boca, que me deitam sobre os tijolos de uma cidade que cresce para dentro, que arranca os próprios dentes para que nasçam outros maiores ainda… É um torpor, é um horror.
O Birthdays acende-se, um jazigo cosmopolita de vidraças para o mundo, uma Dalston subdivida em subrectângulos psiquiátricos, a perspectiva de Kubrick lançada às espingardas negras de um corpo ausente. Elias, um bocado translúcido de carne, um soldado que se atrasou para a própria guerra, canta como se as pálpebras lhe estorvassem os versos, um teatro panóptico onde dançam numa só rajada todas as mulheres que conheci e perdi, em compassos-vassalo, em tremores de contrabaixo, deslizamentos de guitarra que soterram os mortos-vivos que passam à porta. À janela de um Bairro Alto dissolvido em câmara ardente, Pedro Sousa afoga-se no sacrificiário, notário de pulmões roídos, a lebre que escapa do rebanho, o talhante que vai às costelas da realidade para lhe arrancar o osso que falta. É ele com a mobília dos Marching Church ao colo, é ele com um saxofone que poderia ser um ramo de flores para quem passa… À janela.
A ZDB incha-se para ficar com degraus de igreja e o vinho de Cristo troca-se pelo vermute dos poetas. Não faltam à frente as carpideiras, que não choram mas dançam. Agarram-se como capelistas à bainha de cada palavra, ao paleio de olhos nórdicos que lhes desperta as mais estranhas vontades, um desembarque corpo-a-corpo entre os joelhos dele e as nossas mãos. As palavras em ferida, os versos baldios largados pelo palco como cicatrizes, um aleijado que grita «sax solo» como se estivesse numa praça de touros. São corpos à deriva, motores industriais que ainda se escutam ao longe se acreditarem, como eu, que o Tamisa fala pelas tágides que Lisboa lhe emprestou, a marinha vitoriana presa aos cabelos de Elias, daqueles reis sem interesse pela coroa, lamentando-se pela sua fragilidade, sentinela do próprio medo. Ancoro-me às guitarras de pano, ao violino com braço de punhal, enterro-o para sentir a agonia púrpura do vómito, suspiro, e vem-me uma espuma aos lábios que me põe doente, que me põe morto naquele bar de canelas enfiadas onde Londres guarda o columbário.
Quando queríamos mais, já Elias pedia outra cerveja em Lisboa.