Lydia Lunch. Quase nem valeria a pena dizer mais. De facto, não haverá muitos nomes na música popular das últimas três décadas e meia tão auto-evidentes como Lydia Lunch. Mas não pelas razões habituais, entenda-se… Tornou-se muitas vezes comum a ideia de que um artista deve ser valorizado pela capacidade que tiver de estabelecer uma identidade sólida. O seu percurso deve ser linear e procurar um reconhecimento consolidado, facilmente explicável por uma ou outra característica tida como única.
Lydia Lunch foi sempre um nome que designa exactamente contrário disto. Desde que, em 1976, fundou com James Chance os Teenage Jesus and the Jerks, foi sempre uma espécie de viajante – por estilos musicais, territórios artísticos, materiais, temáticas, sozinha ou em conjunto com uma paleta multicolorida de acompanhantes de viagem, de Rowland S. Howard a Omar Rodríguez-López, passando por Exene Cervenka, pelos Anarcocks ou por Henry Rollins. Canta, fala, escreve, representa… De modo que, quando chega a um palco e diz «Boa noite, eu sou a Lydia Lunch», tudo o que se segue é perfeitamente imprevisível. É essa imprevisibilidade que compõe a sua auto-evidência. Perguntar-se-á: não será essa a sua identidade? Talvez, mas é uma identidade plástica, sinuosa e cheia de texturas que se vão acumulando, layer sobre layer, e intermodulando.
O Ritz Clube foi o espaço que recebeu este regresso de Lydia Lunch a Lisboa. E foi, seguramente, o cenário mais adequado. Apesar da cara lavada, o Ritz Clube mantém uma certa aura debas-fond, imaginável em qualquer narrativa que passe pelos becos mal iluminados da grande metrópole global. É por esses territórios que anda Lydia, e é daí que vê o mundo. Trata-se de um espectáculo que, sobretudo, dá poder às palavras e ao ritmo. Por cima de ambientes sonoros reproduzidos em fundo, rodando emloop e em playback, evoluem as palavras de Lydia e a percussão de Beatrice Antolini, uma jovem cantora, compositora e multi-instrumentista italiana, já com três álbuns editados e que recentemente tem composto com Lydia este espectáculo (às duas tem-se juntado, frequentemente, a saxofonista Jessie Evans, natural, segundo a própria, «de Berlim, de Los Angeles e de todo o lado», formando o trio Sister Assassin). Palavras e ritmo fundem-se num monólogo triturador, que dança descompassadamente por entre serial killers, poetas solitários, dançarinas de cabaret e toda a sorte de corpos vivos e não-vivos que formam a psicose do nosso moderno viver colectivo. E é desse cenário que nascem as certezas de Lydia («Every man is the wrong man») e as suas intuições («If the devil exists, she must be a woman»); e é nesse cenário que Lydia sabe, como ninguém, deixar abandonado quem quer que tenha a coragem de se deixar hipnotizar. «Trust the witch, love is like the snake.» Será?
Lydia Lunch tem 53 anos de charme (completados, aliás, a 2 de Junho, no dia do concerto), e sabe-o perfeitamente. Até mesmo quando, 50 minutos depois de entrar em palco, se despede e nos abandona mais uma vez. Voltará, certamente. Aguardemos.