Num conjunto de pessoas, mais importante do que a noção de grupo, é a de indivíduo. Os Linda Martini protegem-na ao máximo – «somos quatro pessoas com corpos diferentes, é normal que assim seja», assegura Cláudia Guerreiro. Ela também nunca leu os «Henrys Millers deles». E o filme “The Elephant Man”, que já projectaram em concerto, não «diz a todos algo pessoalmente». É na música que convergem (todos ouviram The Mars Volta e At The Drive In) mas onde também, invariavelmente, colidem para «tomar uma direcção».
São filhos do movimento punk hardcore lisboeta, quando um edifício abandonado à degradação na Praça de Espanha foi o seu epicentro. Conhecido no meio como A Kasa Enkantada, ocupado no final dos anos noventa e utilizado como espaço de concertos até 2002. Desses tempos, resta a atitude punk que «foi e é a premissa principal», assim vinca Pedro Geraldes, referindo-se à relação da banda com a Universal, firmada com o disco “Turbo Lento”, em que a produção do material permaneceu exclusiva aos quatro integrantes.
Debaixo de um agradável sol de meio-dia, numa mesa de esplanada do Jardim Guerra Junqueiro, sentamo-nos com a baixista e com o guitarrista do conjunto da linha de Sintra, ausentes o vocalista André Henriques e o baterista Hélio Morais. E, seguindo a tendência, num momento em que reeditam as suas quatro primeiras edições e convidam os fãs para uma saga de concertos temáticos, revisitamos também em quarenta minutos de conversa alguns aspectos da carreira e da maneira de estar da banda.
O que acham que aconteceria se agora lançassem um disco de puro punk hardcore?
C: Acho que nunca nos interessou muito o puro punk hardcore, mesmo quando tínhamos bandas mais próximas desse universo não era puro, tinha sempre um twistzinho. Nem a banda que deu origem a Linda Martini, Shoal, era puro punk hardcore, nunca foi esse o caminho. Nós temos tendência em fazer por álbum uma ou outra música que seja assim, nunca puro – mas também – o que é o puro punk hardcore? Agora, um álbum inteiro para mim não faz sentido absolutamente nenhum.
P: Fora desta conversa: eu acho que, numa altura como esta, tendo em conta que a situação social, económica e política não é muito agradável, às vezes penso onde é que estão as bandas de punk e hardcore. Mas, à parte disso, nós, fazermos um disco de punk hardcore – acho que haveria muito boa gente que ia gostar e outra que não nos iria reconhecer, provavelmente. Sei lá, se de repente conseguíssemos ter mais tempo para ensaiar, seriamos mais produtivos, e assim poderia acontecer uma brincadeira, um EP ou uma coisa assim, mas também há outros conceitos que gostávamos de explorar.
Provavelmente, uma grande percentagem do vosso público actual desconhece esse passado com origem no movimento punk hardcore em que adotavam a filosofiastraight edge. O EP homónimo e o “Olhos de Mongol” quebram com esse paradigma, materializando uma sonoridade mais difusa, nebulosa, digamos maispsicotrópica. É neste momento que quebram com essa filosofia? Existiu alguma sincronia entre a adopção de novas sonoridades e um abraçar de substâncias?
P: [Risos] Isso era engraçado, mas não. Quando eramos putos acho que nenhum de nós foi straight edge convicto, talvez o Héliofosse. Eu não bebia nem fumava, mas não era uma religião para mim. Havia malta que tinha mais essa ideologia e era mais rígida, a mim era-me natural. Mas isso foi ali na adolescência, depois começo a beber umas cervejas…Foi muito antes do primeiro EP deLinda Martini. Simplesmente começamos a ter que ver mais com sonoridades, a querer explorar mais uma coisa nebulosa, como ‘tavas a dizer, mais densa, não tão marcada, certa e directa. Mas não coincidiu.
C: Nós somos muito certinhos, até. Se não fossemos, também não o estávamos a dizer. Mas não somos nada daquela cena daviagem e tal… É tudo natural.
«Dá-nos um gosto especial sentir que não estamos a tocar só para os miúdos.» Pedro Geraldes
Houve a possibilidade de cantarem em inglês ou a língua portuguesa foi desde sempre a escolha?
P: Nas nossas bandas anteriores cantávamos em inglês. Linda Martini no início era uma banda instrumental, naquela onda post-rock. Depois tentámos meter uma coisa diferente, tentámossamples mas também era completamente a linguagem post-rock…
C: Tentámos samples em inglês, letras em inglês…
P: As primeiras sessões de gravação são em inglês, até do “Amor Combate” há um versão gravada que é cantada em inglês. Mas como estávamos a tentar desafiarmo-nos ao máximo – ter um som que fosse fresco, para nós, pelo menos – achamos que em português o desafio ia ser maior ainda e que ia ser mais natural…
Sentiram que isso seria primordial para adquirirem uma identidade como banda?
P: Por um lado, sim. Porque o instrumental não era super português, era uma coisa ali muito na onda post-rock, post-punk. Eram músicas que, pronto, nós gostávamos muito mas achávamos que, ok, isto podia ter sido feito na Suécia ou noutro sítio qualquer. Tinha ali uma cena ou outra que ia buscar o registo fado e tal, ali cinco ou seis segundos, nada de assim muito importante. E achámos que o português nos iria distinguir.
C: Mas que ia ser difícil, podíamos ter sorte e isso correr bem ou ninguém curtir por ser em português… Tendo em conta o panorama da música portuguesa na altura e, principalmente, no meio de que nós vínhamos, que tinha algumas bandas que cantavam em português mas eram uma minoria.
O público é um conceito complexo que abraça estereótipos e preconceitos facilmente. Vocês encerram dois relativamente a uma banda que adquire algum sucesso e visibilidade: por um lado, quem vos ouve desde o princípio sente que esse sucesso foi gradual e não um boomimediato e mediático; por outro, existe a opinião de que essa visibilidade, mais notória a partir do “Casa Ocupada”, se deve a terem optado por uma abordagem mais directa nas vossas composições, com músicas mais curtas e com mais voz, ou seja, de mais fácil digestão.
P: São tudo perspectivas do mesmo assunto, o pessoal pode achar o que queira…
C: Quando as pessoas começam a fazer juízos de valor vai tudo por água abaixo. Quando acham que sabem os porquês dos outros. Ninguém sabe o que te motiva.
P: Essas duas são verdadeiras, a única coisa que há para discordar é se fizemos isso com alguma pretensão. E que discordamos certamente. De repente temos mais voz e músicas, de alguma forma, mais fáceis, com uma determinada intenção…
C: Estás sempre a tentar adivinhar. Até podia ser verdade, mas nunca se vai saber realmente. Nós podemos dizer que não, que fizemos aquilo que nos apeteceu. Pode ter saído alguma música mais pop? Pá, naturalmente, já fizemos tantas… Intencional para ir para a rádio? Nunca fizemos isso. Aliás, chega a acontecer escolhermos uma para rádio porque achamos que é mais fácil e depois aquela não passa e afinal outra é que era mais fácil. Nem essa escolha muitas vezes é acertada.
P: Esse percurso, essas mudanças dentro da banda, são um processo – um puxa mais para um lado, outro puxa mais pelo outro – e as coisas vão tomando uma direcção. Nada disso é premeditado com objectivos claros. Nós também muitas vezes falamos disso: daquelas estruturas mais complicadas e elaboradas de músicas como a “Efémera”, sentimos falta disso. Tipo, ‘brutal, meu, quando é voltamos a isto?’. Na altura nós tivemos não sei quantos anos para fazer aquilo, foi saindo. E agora têm-nos saídos outras. Mas isso é um processo, meu, nós não sabemos o que vai sair a seguir.
«Se a música me desse para tudo e mais alguma coisa, também não vamos ser hipócritas, eu adorava viver da música.» Pedro Geraldes
Têm pouco mais de dez anos de existência e já antes eram considerados uma banda de culto, com um público vasto, que abrangerá talvez mais de duas gerações de ouvintes. Qual é o sentimento que vos surge desta realidade?
C: É muito bom sentir que somos ouvidos por putos de quinze anos e por putos de quarenta anos. Até porque nós próprios não estamos tão longe desses quarenta.
P: Já estamos nos trinta. E dá-nos um gosto especial sentir que não estamos a tocar só para os miúdos. Nada contra os miúdos, ainda bem que gostam de nós. Temos todo o gosto no público que temos. Mas agrada-nos também sentir que chegamos a público mais velho, e que as pessoas se identificam e têm um carinho especial pela nossa música.
C: Mas também, depois destes doze anos, continuarmos a ter público que agora tem quinze ou dezasseis anos é muito bom. Quando nós começámos eles tinham cinco anos. Não ouviamLinda Martini e, se ouviam, era por causa dos pais. O que também é bom sinal. Mas, essencialmente, isso quer dizer que o público continua a renovar-se, e isso é muito bom. Não estamos presos a um hit que fizemos há dez anos.
Existe essa preocupação em abranger novos públicos?
C: Não, não temos preocupação nenhuma.
P: Nós queremo-nos divertir. Tocamos, curtirmos, ‘tá memo nice? Bora gravar isto’. A seguir, tudo o que vem, é bom ou é mau.
C: Sempre que tentas alguma coisa muito pensada, vai dar para o torto, provavelmente. Não vale a pena, é fazeres a tua coisa e abraçares o que aí vem.
«Adoro a música [“Amor Combate”], fartei-me foi dessa sensação de ter de a tocar, de ter um lugar cativo.» Pedro Geraldes
Na ressaca do disco “Casa Ocupada”, há cerca de três anos, falavam no MusicBox Club Docs sobre a possibilidade de viverem exclusivamente da música e, entre os quatro, as opiniões divergiam relativamente ao facto de se isso acabaria por influenciar ou não a vossa liberdade de criação artística. Hoje, depois do “Turbo Lento” e estando num momento em que revisitam o vosso passado, qual é a perspectiva deste assunto?
C: Eu acho que continua igual para cada um de nós. Ou seja, oHélio dir-te-ia que adora a ideia de viver só da música que é, aliás, o que ele está a fazer, seja como músico ou booker. Eu continuo a dizer que viver só de uma coisa limita as opções, é bom ter um plano b e, no fundo, ter outros interesses. Gosto de música mas não pretendo parar de fazer outras coisas que também me interessam.
P: A música é um prazer muito grande e provavelmente a maior paixão nas nossas vidas. E é interessante não estares a depositar tudo naquilo. Para aquilo te sair mais genuíno, sem ser tão pensado. Nas consequências, no que tu precisas de ter para conseguires fazer o teu dia-a-dia. Acho que acaba por ser mais verdadeiro. E menos racional, no sentido estratégico do que precisas de receber para pagares as tuas contas. Eu continuo a procurar essa independência. Mas se a música me desse para tudo e mais alguma coisa, também não vamos ser hipócritas, eu adorava viver da música. Mas as condições que existem em termos de indústria musical fazem-me acreditar que não quero pôr uma corda ao pescoço.
C: Isto é tudo pessoal. Eu adorava receber imenso dinheiro da música. Mas por mais dinheiro que recebesse não ia deixar nunca de desenhar. Nós somos quatro pessoas e cada uma vive a vida de uma maneira diferente. Adorávamos todos viver da música, mas cada um faria com isso uma coisa diferente.
P: Seria óptimo viver da banda, a cena não é essa, a cena é o perigo de estar a moldar o que fazes por uma necessidade.
Há um balanço nostálgico deste revisitar do passado nos ensaios de preparação dos concertos especiais que têm programados?
C: Acho que não há nenhum balanço nostálgico. Há um sentimento de esforço, no sentido de recuperarmos coisas que se perderam por preguiça ou por acharmos que não faziam sentido em concerto. Há isso: um sentimento de esforço e de fazer as coisas bem, tocar músicas que nunca tocamos, readaptar músicas, e não tanto ua nostalgia. Não é assim tão diferente do que era.
P: Houve um desafio grande em aprender malhas que nunca tocámos ao vivo…
C: Como nunca houve nenhuma apresentação do “Marsupial”, nunca tivemos de tocar as músicas todas, íamos pondo músicas, aqui e ali, em algum concerto. Então, aquelas que foram assim mais músicas de estúdio mesmo, acabámos por nunca tocar, e esta é a primeira vez que temos essa pressão, boa, de tocar essas músicas. Tivemos de fazer alguma coisa diferente com elas.
Eventualmente, acabaram por se fartar da “Amor Combate”?
P: Eu fartei-me [risos]. Foi uma altura em que estávamos a tocá-la sempre e, do meu lado, eu gosto de ir revezando as músicas. E não gosto de sentir que há lugares cativos, e parecia que aquela tinha de ser sempre tocada.
C: Se nós dermos sempre a mesma coisa, crias maus hábitos [risos], tem de ser uma educação, tanto do público para nós, como de nós para o público…
P: Isso até alimenta aquela malta que vai para ouvir uma música, do resto está a mamar cervejas no bar – não queremos esse tipo de público – queremos alguém que nos acompanhe, que conheça as nossas músicas. Não somos uma banda de um hit, como estava a dizer a Cláudia. Essa foi uma música muito forte, que nos trouxe muita visibilidade e público, mas já não é a mesma coisa. Se calhar hoje já há outras músicas mais recentes que o pessoal fica mais empolgado ao vivo.
C: Isso hoje acontece com a “Ratos”, por exemplo. Por acaso estás aqui com dois que se fartaram [risos]. O André, tass bem, de uma maneira ou outra. O Hélio, por ele, teria continuado a tocar…
P: Na verdade, nós não nos fartamos da música. Adoro a música, fartei-me foi dessa sensação de ter de a tocar, de ter um lugar cativo.
Para terminarmos, o que andam a magicar para o futuro?
C: Andamos a magicar um álbum novo. Temos já músicas feitas, que não estão completas porque não têm voz, mas estão próximas do fim. E assim que nos virmos livres destes concertos das reedições voltamos ao estúdio em força.
Podem adiantar que sonoridade irá abranger?
P: Sonoridade? Ainda estamos à procura.