Se em “Casa Ocupada” confirmaram ser definitivamente uma banda de culto com um público fiel, o recém-editado “Turbo Lento” levou os Linda Martini até à multinacional Universal. Sem cedências ou desvios, o novo disco mantém as coordenadas mais punk e adiciona pós de claustrofobia, nomeadamente através de uma produção muito fechada.

Horas antes de subirem ao palco do MEO Arena, em Lisboa, o vocalista André Henriques e o baterista Hélio Morais falaram ao PA’ de um álbum que cresce com as audições, de um lado político pouco intencional ou das marcas de portugalidade da banda. E, quem for para os concertos à espera de um alinhamento previsível, esqueça: “Amor Combate” pode ficar de fora e a catarse de “100 Metros Sereia” pode ser antecipada.

“Turbo Lento” saiu há poucas semanas. Consideram que este poderá ser o vosso disco mais directo, mais noisy, mais claustrofóbico?

André Henriques (AH) – O disco mais directo consideramos que é o “Casa Ocupada”, no sentido de ter músicas mais curtas, mais punk, sem grandes floreados. Neste, apesar de haver coisas mais directas, tem muito mais guitarras, tem muito mais jogos harmónicos na generalidade das músicas. E acontece o mesmo que no “Olhos de Mongol”: com as sucessivas audições, vais ouvir coisas que não ouviste na primeira vez. Quanto ao ser claustrofóbico, é algo que já faz parte da nossa estética, embora nos tenham dito que, desta vez, o som está um pouco fechado. Há pessoas que gostam, outras não… enfim, é uma opção de produção nossa.

No fundo, essa produção mais fechada é que pode provocar esse efeito mais bruto e cru…

Hélio Morais (HM) – É possível. O “Casa Ocupada” era um disco com menos pistas, com mais espaços, enquanto este tem mais guitarras, logo vai soar sempre mais condensado.

E é, por outro lado, talvez o disco com mais palavras, com temas mais próximos do formato de canção. Foi uma opção propositada?

HM – Aconteceu simplesmente. Nós compusemos da mesma forma, os quatro na  garagem. Ou na sala de ensaios mais propriamente, tenho de deixar de dizer garagem…

Para dar um tom mais formal ao espaço?

HM – Não, apenas e só porque já não é uma garagem (risos). Desta vez, nós fizemos uma pré-produção sozinhos na sala de ensaios e isso permitiu ao André ter um pouco mais de tempo para escrever.

AH – Por outro lado e apesar de termos sido sempre muito económicos no uso das palavras, desta vez sentimos que havia temas que não viviam sozinhos. Houve músicas que deram um trabalho tremendo nesse aspecto, como o “Aparato”, que esteve para ser o primeiro single e não foi porque as vozes não estavam resolvidas. Mas não foi nada premeditado.

O disco chama-se “Turbo Lento”. Havia, no título, uma perspectiva de duas velocidades ou há uma certa ironia, na perspectiva do disco não ser propriamente lento?

HM – Começou por ser apenas uma proposta fonética do Pedro [guitarrista] e todos gostámos. O significado veio depois. A primeira reacção foi pensar num processo “turbulento” e daí o artwork do disco, com aquela espiral confusa. Depois, quando percebemos que o álbum tinha duas facetas, decidimos separar em duas palavras.

Ouvindo o disco, percebemos que a mudança para uma grande editora não vos fez seguir um caminho mais comercial. Alguma vez temeram que isso pudesse acontecer?

AH – Não, o disco já estava feito. Eles só vieram ter connosco quando nós estávamos em estúdio a fechar e nunca impuseram nada.

HM – Os tempos são claramente outros. Se olhares para os catálogos das grandes editoras, eles têm bandas para vender, bandas que querem que venham a crescer para vender e bandas que servem para dar uma certa legitimidade artística, para puxar outros públicos. Talvez estejamos neste último patamar, apesar de, se calhar, vendermos mais discos do que outras bandas da Universal.

Na 4ª-feira entrevistei os God Is An Astronaut…

HM – Ah, eles falaram de nós, não foi? (risos)

Sim, sim… falaram de vocês e dos All-Star Project. Vocês abriram para eles, certo?

HM – Não só. Primeiro eles vieram cá porque a Naked, a editora que lançou depois o “Olhos de Mongol”, distribuiu os God is An Astronaut em Portugal. Então fizemos uma espécie de permuta: eles vieram cá fazer uns concertos connosco e depois fomos tocar à Irlanda com eles, a Dublin e Waterford.

AH – Isto foi nos inícios de 2006. Aliás, nessa altura o Neilsmasterizou o nosso primeiro EP.

Mas voltando ao que vos ia perguntar, o Torsten disse que o problema da expressão pós-rock é a catalogação criar algumas barreiras à criatividade. É um rótulo que também vos incomoda?

HM – Incomoda só porque não é fiel. O que é o pós-rock?

AH – Enfim, os rótulos têm de existir. Valha a verdade, quando nós começámos, uma grande fatia era inspiração desse imaginário, com alternância entre explosões e partes mais emotivas. E o facto de metermos voz foi uma forma de sair desse rótulo. Não que nos incomodasse, mas era castrador fazermos só isso.

Isto porque o lado mais directo e próximo do formato canção é realmente o que não sucede no pós-rock…

AH – Exacto. O “Olhos de Mongol” já não era um disco pós-rock, mas no “Casa Ocupada” afastámo-nos definitivamente, porque entrámos a pé juntos no rock e fomos buscar as raízes punk e hardcore que tínhamos. Mas temos sempre alguma coisa do estilo…

HM – Como os Pink Floyd e até os U2 de uma certa fase tinham. E ninguém chama de pós-rock àquilo.

Vocês não são propriamente uma banda que imaginamos com uma conotação política. Mas já pegaram no “FMI”, do José Mário Branco, e agora no “Tanto Mar”, do Chico Buarque. Podemos dizer que é um lado de intervenção subliminar?

AH – Se calhar acaba por ser, não sei. Quando nós dizemos que não somos uma banda política é porque nós crescemos no hardcore, onde havia claramente bandas com uma forte agenda política, com concertos que eram quase comícios, algo que não sucede connosco. Nós nunca tivemos intenção de doutrinar as pessoas, baseamo-nos muito mais nos nossos sentimentos.

Mas, usando o título do vosso disco, pode haver um certo reflexo da turbulência social que é marca dos nossos dias…

AH – Claro, não somos hipócritas. Hoje em dia, em Portugal, todos sentimos ou conhecemos alguém que é vítima desta crise social, política e económica. E tudo isso acaba por nos influenciar. A questão é que tentámos pegar no “FMI” ou no “Tanto Mar” de uma forma aberta e intemporal. Não nos interessa tanto cristalizar o presente.

HM – Aliás, se reparares nos samples que usámos, verás que tentámos descontextualizar o lado político e não usar as partes mais óbvias.

AH – Dá-nos um certo gozo isso. No pré-25 de Abril, os músicos de intervenção não podiam dizer as coisas directamente e tinham de recorrer a metáforas. E, embora a analogia não seja boa, gostamos muito desse refúgio nas metáforas e nas palavras. Há quem nos diz: “o ‘Ratos’ é claramente sobre mim, porque fui despedido ou mandei o meu patrão para o caralho”, e isso não é necessariamente errado. É giro não fechar os conceitos.

É permitir que as pessoas possam fazer a sua interpretação de cada tema?

HM – Sim, claro. Acho que os discos ganham uma vida diferente, ganham muito mais vidas

E, para além destes, têm ideia de outros temas alheios que também gostassem de usar nas vossas canções?

AH – Não sei. Já usámos o “Adeus Tristeza”, que nunca foi editado e que tem a conotação dos anos 70. E pegámos no próprio “Belarmino”, que não é uma questão política, mas é uma figura portuguesa. Dá-nos sobretudo gozo porque há pouca gente a fazer isso no rock, ou seja, a pegar em coisas nossas e que sejam distintivas. Comparam-nos com os Sonic Youth e com as bandas pós-rock, mas nós ouvimos coisas em português que eles não ouviram.

Passando para o formato ao vivo, continua a ser aí que, pela empatia que têm com o público, se encontra o vosso verdadeiro espaço de conforto?

HM – É aí, embora também na sala de ensaios, quando estamos só os quatro, porque mesmo em palco se percebe bem como próximos nós estamos uns dos outros. Só que ao vivo acresce teres o público contigo, é o expoente máximo de partilha, dás e recebes ao mesmo tempo.

Já é imagem de marca terminarem com a euforia do “100 Metros Sereia”. Continuará a ser assim nesta digressão ou a catarse final será outra?

AH – Ainda ontem estivemos a falar sobre isso (risos). Temos de fugir a isso porque senão torna-se óbvio. A questão é que é uma grande música para fechar e adoramos ver aquele mar de gente a cantar. Mas já temos 10 anos e já nos é permitido buscar outras soluções. Um exemplo crasso foi na apresentação do Porto, em que não tocámos o “Amor Combate”, um dos hinos de sempre. É como tudo, queremos sempre fugir das fórmulas e ao vivo isso também acontece.

Estão a tocar em sítios grandes, como o Hard Club ou a sala secundária do MEO Arena [antigo Pavilhão Atlântico], que tem também uma dimensão considerável. É fruto de um certo estatuto de popularidade a que chegaram?

HM – Enfim, estes espectáculos são produções nossas e, como tal, fizemos uma avaliação do tipo de salas de média dimensão que havia. Estas foram as melhores soluções que arranjámos e a verdade é que Lisboa está muito atrás do Porto, falta um espaço como a Sala 1 do Hard Club.

AH – Para uma banda com a exposição que nós já temos, mas que não enche um coliseu ou a sala principal do Pavilhão Atlântico, acaba por ser muito difícil ter um espaço em Lisboa onde as pessoas possam estar confortáveis.

HM – Há o TMN ao Vivo, mas quem lá foi sabe como aquilo é… não é um espaço de concertos.

Mas voltando ao vosso percurso, sentem que essa exposição importante de que falam tem um mérito especial por pouco ou nada passarem nas rádios?

HM – Sim, só passamos na Antena 3. E depois na Radar ou na Vodafone, que não são rádios nacionais. Por vezes nós achamos: “hey, esta música é bué comercial”. Por exemplo, o “Volta”…  o que é certo é que depois só consegue passar na Antena 3, porque tem guitarras e distorção, logo já não fica fácil.

AH – Mas isso também nos dá algum gozo, é sinónimo de que fomos fazendo as coisas à nossa medida. Termos este reconhecimento e esta visibilidade tem um impacto grande para nós.

E deve ser especialmente fixe para vocês pelo facto de se terem mantido fiéis a vocês mesmos?

AH – Claro que sim, mexe connosco no sentido positivo, até porque é um pouco irreal ao mesmo tempo. Lembramo-nos do início da banda e ninguém tinha aspirações a chegar aqui. A verdade é que se não tivéssemos tido a Universal nem tanta gente nos concertos, continuaríamos quase de certeza a tocar, ainda que num espaço mais pequeno. Este sucesso deixa-nos completamente babados, é a palavra certa, até porque Portugal é um país pequeno e não há grande mercado.

Dado esse reconhecimento, não é estranho que, quando marcam presença num grande festival, o façam sempre de uma forma algo secundária?

AM – Pois, és tuga e pronto. No Alive tocámos no início, antes do Jake Bugg, que respeitamos muito, mas que deve ter vendido uns dez discos em Portugal. Não faz qualquer sentido. Contudo, isto não se passa só em Portugal. Quando fomos à Irlanda e tocámos em Waterford, vimos uns cartazes com o nosso nome em letras garrafais, enquanto os God Is An Astronaut quase não apareciam.

HM  – Curiosamente são dois países intervencionados (risos). Em Espanha, tudo é muito diferente. O Lee Ranaldo tocou numa versão itinerante do Primavera Sound com os Standstill, uma banda espanhola. Achas que foi ele a fechar? Nem pensar. Mas, enfim… pode ser que, em Portugal, as coisas sejam diferentes no futuro. Pouco a pouco, já se vão notando algumas melhorias.