Leviathan - "Scar Sighted"
10Profound Lore

A automutilação é um sintoma clássico de depressão ansiosa. O focinho achatado de uma lâmina que irrompe, coágulos de aguardente que sibilam em noites de aroma frutado, o albornoz azul-escuro que acumula marijuana em ponto-fagulha e um mas onde é que pus a merda dos comprimidos rugido como só um drogado em desespero sabe. Depois, logo, a paranoia. Será que os vizinhos ouviram? E se vão contar ao meu senhorio? E se chamam a bófia? Só faço merda, só faço merda… O melhor é desligar o telemóvel antes que alguém me ligue.

Não sabemos se o Jef Whitehead conhece estas noites por tu. Deambulações vagabundas por becos fumegantes, o cheiro a podre do lixo que se acumula numa madrugada de sexta, autocarros de trombas desgastadas pelo alcatrão de todos os dias, emigrantes asiáticos de cara chupada e a pingar do nariz num cocktail de histamina e branca cortada sabe-se lá com o quê, motards que passam em aceleração num peido carburado que desperta os de fraco sono, embrulhados no cabedal que camufla tatuagens proto-fascistas descoloradas pelos anos e desenhadas com o mesmo talento dos putos da primária que só sabem fazer sóis e nuvens a rirem-se de inocência; um 14/88 ou uma totenkop fgrafada entre gorgolejos de Budweiser ou Bushmills ou lá o que é que esses gajos bebem. Agarrados à fruta com os braços cheios de pregas mortais onde antigamente havia músculo e existia vida, bêbados que se encostam à solidão em paredes de tijolo como se fossem espreguiçadeiras nas praias de Nassau, emigrantes africanos que vestem escangalhados casacos de xadrez, encardidos bonés de pano e que, mal me veem, espetam os olhos no asfalto com vergonha. Putas que pelos seus anos de miséria e humilhação conquistaram o direito à lordose e a um suicídio que não deixa história nem conta bancária, gatos de rua que namoriscam sacos de plástico cheios de arroz que o Suresh, nascido em Punjab e agora escravo de mesa num restaurante indiano no meio de Aberdeen, atirou para os contentores das traseiras; parecem os contentores mórbidos obesos desconsolados, ansiando de bocarra aberta por golfadas de sebo engavetado em porcas frigideiras e leite azedo. Bares que se entreabrem de quando em vez para que o bafo a suor escape pela frincha e pela frincha saem dois casais escoceses de pele rosada por meia-dúzia de Desperados e umas quantas pints (por lapso do empregado, ficaram a dever uma). O táxi anuncia-se num escusado chiar de travões e leva-os para oeste enquanto o estúpido e electrónico remix dos Arctic Monkeys fica para trás entretendo os que naquela noite já não encontram companhia; de dentro do bar, uma tipa de cabelos curtos, que deve ter aquela cabeça cheia de talidomida, acena-me em slow motion mas ali não entro. A hidrólise deixa-me com humor de cão e não estou para patrocinar outro mise-en-scène de sedução barata que culminaria num priapismo invertido, num sábado de mau hálito e em murmúrios crepusculares de arrependimento, são tantos que lhes perdi a conta faz agora seis anos.

Não sei se o Jef Whitehead escarafunchou estas subrealidades, estes subníveis que vivem do exaspero, das gargalhadas ao longe que nunca são as nossas, dos chavalos que gastam a juventude em rinorragias e dialogam tanto com a solidão que já lhe conhecem as estrias. Das sociofobias que me fazem andar de navalha no bolso, eu sei, um dia vou acabar sedado entre quatro paredes alimentado pela cantina de merda de Broadmoor. Não sei se o Jef Whitehead passou noites ao vento, que nos chama pelo nome e nos traz pelo remanso os uivos desesperados de uma mulher que sucumbe aos pés de um vulto por identificar. O vizinho que acende o alpendre por desconfiança, o vizinho que estreia o segundo cinzeiro numa semana por vício barbitúrico, o vizinho que decreta o silêncio de Chrissy, o Golden Retriever de dezoito meses, por medo. Não sei, mas especulo.

A obra de Jef Whitehead, enquanto Wrest, tem fosfenos de angústia e o carbúnculo da aflição. Desconheço, nesta embrutecida Estrada de Damasco, outro riff tão pavoroso quanto o de “At The Door To The Tenth Sub Level Of Suicide” aos 0:58. São esperanças ceifadas num acorde. Cabem lá os vossos Electric Wizards, os vossos Sleeps, os vossos Burzums, todo o meu nojo, o vitriolo dele e quanta corda for preciso para nos amarrar a um poste. A obra de Wrest, melodramaticamente real, cheia de hemispasmos nervosos, é black metal com o que ele tem de escabroso, simbólico, frívolo, doentio e recluso. Defeituoso, quase caricaturável. Soberbo, não replicável. Kota Rani encarnada homem, as próprias entranhas tributadas aos apetites malignos de sirenes que se afastam em emergência por ruas que não conhecemos, aos demónios em catalepsia que se juntam pelo cheiro a sangue. A obra de Wrest reflecte o abuso disfuncional do ego, o pathos morbígeno de uma marcha que tresanda a morte. Os recentes apêndices biográficos, ou seja, o ser agora pai de uma bebé de poucos meses e a relação com Stevie Floyd, interessam nada para o contexto “Scar Sighted”. Leviathan permanece um frappeur narcisista, quórum de um homem só, colhendo pesadelos desmetilados pela noite.

Os lugares-comuns jornalísticos, que tanto agradam aos leitores preguiçosos e que de uma crítica apenas anseiam pela mesma merda de sempre, ficarão contentes se vos disser que Leviathan nunca soou tão amplo, tão experimental, tão psicadélico nas suas postulações de ódio e tão livre nos seus borbotões de raiva. Mas para os clichés que enchem a crítica musical (?) de coloquialismos baratos haverá outros. Quanto a mim, há coisas que a Wrest nunca lhe ouvi, amplitudes neurálgicas que se metabolizam e dilatam nos orifícios de “Gardens Of Coprolite” como halos iridescentes presos no escuro. “Scar Sighted” é outra sexta-feira por vir, imbricada em tremores de abstinência, pneus que grisalham o asfalto por desleixo ebriático, arritmias circadianas de ranger os dentes e gretar os lábios, velhas polaroides como pesadelos crónicos de um passado irrecuperável, silhuetas urbanas que respiram à cadência de um milhão de isqueiros em uníssono, ácido lático que lhe lambe as feridas esbranquiçadas pelo bolor consensual, um revólver cravado no osso temporal exigindo silêncio enquanto “Aphonos” se espalha com fealdade por câmaras anecoicas sem saída. O isolamento social, a supratimidez que os afasta sem retorno, os espelhos quebrados por acto reflexo, os vidros que se cravam nos pés como beijos de despedida; a automutilação é um sintoma clássico de depressão ansiosa.

Sábado. A televisão projecta-se no acaso, um pivot de ascendência judaica que enrola os erres aponta um gráfico que nos faz crer que as acções da British Petroleum sofrem com a queda global dos preços, questiona-se o futuro da Nigéria enquanto país exportador, ficciona-se o que teria sido se o yes tivesse conquistado o referendo para a independência escocesa, um desastre, meu, um desastre, ‘tás a ver? e agora o que é que vai ser das extracções no Mar do Norte?, um ângulo oblíquo de tédio tomba-se sobre o meu peito e as cinzas acotovelam-se pelo tapete como hámsteres de laboratório alimentados ao abrigo de interferência macrobiótica. O telemóvel por ligar, contas por abrir, tantas mensagens por responder de uma gaja que não se cansa de poetisar os meus defeitos e corrigir o meu hábito de cuspir pela janela no final de cada cigarro. O sol trepa pelas paredes numa circum-navegação certeira, as morgues trocam de hóspedes mas recusam-se a mudar de bata branca e o meu casaco de cabedal chia de nicotina em cima da colcha à espera que o leve à rua. Pelas persianas de retina entreaberta espreito as nuvens fofas de chuva que remoinham ao acaso, fracos candeeiros que pestanejam de sono, semáforos que se amarelam na indecisão entre o parar e o avançar, pequenas esquinas onde os jornais desportivos se despedem folha a folha de um dia que já não volta e de notícias que não se repetem pela lesão, reforma ou morte dos intervenientes. Aberdeen balouça-se sob administração ausente, as rasas moradias são como brasões cinzentos de pó, guaxinins nervosos enfiam-se no parque mais próximo por precaução, os poucos calcanhares sobre o cimento despertam um ruído elegante manchado de frio. O vinil de “Scar Sighted” rodopia sobre si como elemento externo à realidade, uma ratazana doente transportada de outros mármores.