“Noise. Recitation” foram as palavras mais ditas por Lee Ranaldo, numa noite onde o experimentalismo entre o som e a palavra reinaram perante um Musicbox esgotado ou lá muito perto. À espera de quem lá entrava antes do concerto estava um palco apenas com um painel de pedais e uma guitarra presa do tecto por um cordel, e muitos sussurros de um público que entoava quase em uníssono um único nome: Sonic Youth.
Ranaldo, vocalista secundário e guitarrista da banda histórica, deverá estar bem ciente da associação imediata que o seu nome é feito ao grupo de Moore e Gordon, e confirmou-se o que já se esperava: a sua mera presença atraz uma pequena multidão. O seu trabalho a solo nada tem a ver com a banda, mas o facto de dela fazer parte basta. Os mais informados sabiam já o que esperar: uma experiência, uma noite de ambientes densos, palavras fortes e uma guitarra ríspida. E a noite foi isso, de facto, e muito mais.
Ranaldo entra em palco, já perto de meia-hora, depois da hora marcada, com folhas na mão e aquele cabelo grisalho que já tantos devem conhecer. “A noite de hoje ia ser feita só de palavras”, diz. “Mas vamos tentar uma coisa diferente”. Fala ao microfone, com papéis na mão, afirmando que vai “ler poemas; alguns novos, outros antigos. A maior parte dos novos é feita a partir de spam que recebo no mail… não fazem muito sentido, e ainda menos devem fazer quando traduzidos para português”.
Mas a arte fala todas as línguas, e foi ao longo de cerca de uma hora que Ranaldo criou paisagens sonoras e visuais, apoiado em projecções de vídeo atrás de si, e numa guitarra que fazia rodopiar pelo palco e fora dele, obrigando os mais próximos do palco a desviar-se. Fazia barulho, batendo na guitarra com baquetas, com arcos de cordas e, até, com sinos. Sempre tão envolvente, quanto surpreendente.
Os poemas, esses, ditos por uma grande voz que é tão boa a cantar quanto a declamar, criam paisagens por vezes negras, por vezes surreais. Todo o cenário é impressionante: Ranaldo a declamar ao microfone, a guitarra a rodopiar pelo palco e a lançar ruído que agarrava os presentes, e vídeos que iam passando atrás (“Há alguma coisa que não está aí bem, o vídeo antes não era assim, man”, diz ele com um sorriso, a certa altura, já não muito longe do final, enquanto atrás de si se via uma estrada sem fim). Os poemas eram todos óptimos, revelando um poeta dotado e interessante num guitarrista que já nada tem a provar a ninguém.
Assim, Ranaldo comandou a noite do início ao fim, mostrando todo o seu experimentalismo e, acima de tudo, a forma como o ruído e as palavras podem funcionar em conjunto. A sua voz, claro, ajudava a dar impacto a todas as palavras que se ouviam, tal como os sons que ia arrancando da sua guitarra. A certa altura, tira a guitarra do cordel, coloca-a ao pescoço, e dela arranca sons de distorção, que depois põe, parcialmente, em loop, enquanto pega numa das folhas e declama um novo poema. Após cada texto, atira a folha respectiva ao chão, e não tarda o palco é um pequeno e branco mar de poesia, com folhas espalhadas por todo o lado (uma paisagem, diga-se, que só ajudou a noite). Talvez algo planeado por Ranaldo, talvez não, mas com uma certeza se ficou: ali, tudo bateu certo.
“You’re flickering faintly”, diz ao microfone abanando pequenos sinos. “I’m losing the signal”. Abandona o microfone, e dirige-se à guitarra, entretanto já novamente pendurada do tecto, repetindo a mesma frase. Abana a guitarra, esfrega nela os sinos, arranca sons cada vez mais fortes. “I’m losing…”. A frase fica pendurada, como a guitarra, o ruído vai-se prolongando e, quando cessa, sucede o mesmo ao especáculo. Ranaldo lança um satisfeito “Okay”, acenando ao público, que responde com uma chuva de aplausos, obviamente satisfeito.
E assim termina a experiência, e a grande noite. Recitação de ruído e palavras, onde ambas se uniram. Ranaldo demonstrou ser um artista notável e impressionante no que faz, trazendo aoFestival Silêncio mais uma afirmação do que a palavra, aliada ao som, é capaz. Tão indescritível quanto única, tão forte quanto envolvente. Tão intenso quando o ruído, por vezes tão belo quanto a recitação. Uma certeza ficou: tanto na banda que o tornou famoso quanto a solo, Ranaldo é, efectivamente, marcante.