A herança folclórica portuguesa em fusão com os ambientes pós-convencionais moldaram o tiro de partida dos Laia e mantêm-se compatíveis neste segundo álbum. Afiançando que este post-rock portucalense pode sacudir o espírito e não apenas a ponta da língua. Numa época em que tantos olhos lusitanos estão virados lá para fora, social e musicalmente, este regresso às raízes do colectivo lisboeta é uma contradição gratificante para quem os viu nascer. Quase três anos depois da edição de Viva Jesus e Mais Alguém, recuperam a inspiração contemplativa, dentro desta perspectiva livre e honesta de osmose popular. Responsáveis, juntamente com os Catacombe ou os Indignu, pela consolidação do género em Portugal, falamos com o Pedro Trigueiro, um dos cérebros da operação, sobre as incidências desta Laia e as forças motrizes de uma música que tanto pode viver no Minho como em Alfama.

Na crítica a Sogra do jornal Rock Rola em Barcelos, o Ilídio Marques alertou para a exoneração de “todos os elementos desse prefixo rock ou todos da nossa música popular. Procura aqui, sim, a harmonia entre os dois.” É assim que gostam de imaginar a vossa música expressa em palavras?

A forma como ele colocou a leitura do disco é muito concreta. É precisamente esse lado de harmonia entre mundos que procuramos fazer. É como materializar tudo o que ouvimos, discutimos e rimos com música.

Como analisam o segundo trabalho, a esta distância, perante o debut de Viva Jesus e mais alguém.

Sogra é necessariamente um disco que pratica desporto. Deixou de jogar futebol de rua e federou-se. Ganhou músculo. A contemplação é parte desse crescimento “físico” das músicas. Saber olhar para a música e deixá-la solta até ela chegar ao fim.

A adaptação do canto popular Encomendação das Almas, logo no início do álbum, lega um conjunto de crenças e ritos folclóricos que induzem a uma certa religiosidade. Esta leitura pagã e intemporal faz parte da identidade dos Laia?

A teologia sempre anda à volta de Laia. Confirma-se. Tudo o que nos rodeia é politicamente activo e politeísta. O debate sobre fé, seja ela em que formato se manifeste (futebol, religião, etc.), é uma constante leviandade entre a rapaziada de LaiaViva Jesus e mais alguém já é um título de disco em que se assume uma semântica que pode ser dúbia, por exemplo.

A divisão de tarefas com os três recentes elementos e a base numérica da banda transfigurou a vossa música ou apenas veio ornamentar aquilo que já tinham projectado para esta Sogra?

Lá está, é o músculo da coisa. No primeiro disco foi feito a quatro mãos. Para o Sogra as ideias foram concretizadas por mais mãos, o que também dá uma força concreta ao resultado final. Mais robusto, talvez.

Quais eram as expectativas quando decidiram agarrar aLembra-me um sonho lindo e tomá-la como vossa? E o que achou Fausto Bordalo Dias do remake quando finalmente revelaram a nova “fatiota”?

A versão da música tinha que ser concretizada. Habitava a nossa cabeça desde o princípio destas andanças. É um texto épico do Fausto, sobre uma ideia de identidade de uma nação. A nossa versão foi aprovada com uma palmada na perna dentro de um táxi em Lisboa, a caminho de um programa de rádio. A grandiosidade da palmada que o Fausto deu foi o carimbo máximo que poderíamos ter recebido. Ipsis verbis: “Opá, está aprovada!”

Confessaram numa entrevista à Visão que o regime da banda era “anti-democrático”, visto que só o Pedro e o Alexandre tinham voto na composição. Isso para vocês é limitador ou a melhor mecânica de trabalho possível?

Entre amigos a melhor forma de comunicar é ser franco e dizer algo parvo como: “gostava que pintasses uma tela naquela parede da minha sala. Aceitas?” A resposta do amigo já contempla que irá pintar algo especial para aquela parede em especial e não para outra qualquer parede. Simplificando: assumir que temos uma ideia concreta sobre algo é, entre amigos, um acto de transparência. Se há uma ideia, convida-se um amigo e concretiza-se.

Sendo um catalisador tão próximo do vosso vocabulário artístico, como imaginam a carreira do Carlos Paredes se ele fosse vivo, hoje em dia?

Carlos Paredes é um bloco. Daqueles sólidos que temos enquanto entidade. Todos os povos e culturas gostam de partilhar o que os torna especiais. O Paredes é especial. Não importa enquadrar a obra num tempo. E hoje era rapazinho para ser cabeça de cartaz num Montreaux, curar um palco em San Sebastian e fazer chorar de emoção o Jimmy Page. Sobre o Sol que Nunca se Põe era capaz de não dizer grande coisa, limitando-se a dobrar-se sobre a guitarra e seguir a sua longa conversa com o instrumento.

Qual é a importância que dedicam à escrita e à percepção da palavra neste projecto? Têm algum escritor/poeta de referência para a banda.

O cuidado que temos no uso e colocação dos instrumentos é transversal à palavra. Queremos que todas as palavras tenham o seu significado próprio e nunca colocadas de um modo aleatório. Meio ao estilo de poesia concreta. Interessa-nos muito, gente que tenha coisas para dizer. Que emocionem, que envolvam, que façam pensar, que não tenham medo do ridículo, que seja especial, que seja menor ou maior. Tem que ter alguma coisa para dizer. Há um moço que é transversal aos cinco da banda. Um gaiato de Benfica. Esse António Lobo Antunes. “A morte é um dia que não chega ao fim”, diz ele. O resto são cantigas.

Já chegaram a alguma conclusão quando nós (jornalistas) vos questionamos acerca da portugalidade, esse termo tão madrasto quanto exigente, que é subliminar na vossa mensagem? O tema Sacuda-se que a Manga Deixa não é uma tentativa disso mesmo.?

Os rótulos e definições são úteis. Indicam caminhos. Tornou-se muito moda dizer que catalogar é o demónio. Só de olhar para as redes sociais, tudo aquilo é catálogo de importâncias, mas enfim. “Portugalidade” está cheia de semiótica, de significados e significantes. A nossa presunção levou-nos a tentar fazer esse exercício nessa música que mencionas. É mais um grande “so what?”. A expressão Sacuda-se que a Manga Deixa é muito bairrista e tem algo de “Adeus, ó vai-te embora”. É a nossa condição portuguesa com todas as idiossincrasias, mas porque raio não admitimos que vivemos mais na rua que os alemães, se temos mais sol?! Somos uns totós que abrimos as portas aos noruegueses, que conhecemos ontem num bar qualquer, mas e quê?! Há mudanças a fazer? Há. Mas é muito mais estruturante do que apontarem-nos coisas básicas.

Como interpretam esta nova vaga de projectos que apostam no rejuvenescimento da música tradicional portuguesa, transpostada para uma linguagem moderna e popular? Conseguem identificar alguns pontos de intersecção com bandas como Diabo na Cruz, o Experimentar Na M’Incomoda ou TV Rural?

Tudo é válido. Há gajos que já meteram este processo a andar há mais tempo. Nós estamos a solidificar esse início. Sitiados já era do cacete! Era The Pogues à portuguesa. E isso é como estilizar um género musical. O proselitismo da tradição é uma coisa que não é nada agradável. A tradição existe como regra, e como em tudo na vida há opções: a de repetir a regra ou usar a regra para criar novas regras para outras novas regras e assim sucessivamente.

Agora que o post rock já abandonou aquele buzz mediático e se começa a analisar com mais atenção e detalhe as bandas que resistiram ao apogeu do estilo, de que forma é que vocês reflectem esse passado recente e consideram-no factor relevante para o que o futuro trará?

Se há frases batidas é qualquer coisa como: o post-rock é um estado de espírito. A cena “post” é até muito divertida. Conseguir chegar a um “post” qualquer coisa. “Post” piada maliciosa. “Post” futebol moderno. O futuro do “post-rock” passa pela recriação diária dos seus agentes. Desafiar quem compõe e ao mesmo tempo quem escuta.

Tanto quanto sei, nenhum dos elementos vive da música, ou pelo menos dos Laia. Aquela que, na minha opinião, é a melhor banda que este país viu nascer – Mão Morta – sempre fez questão de manter essa relação económica num plano secundário. O melhor guitarrista português de sempre imortalizou uma célebre frase em que confessava que gostava “demasiado da música para viver dela”. Isto não é nenhum ataque declarado à música mainstream, mas consideram haver uma relação lógica entre este facto e a liberdade criativa da vossa música. Reconhecem que a não vinculação a estes pressupostos comerciais é um dos pontos de referência no magnetismo de todas estas influências? 

A demonização do binómio música-dinheiro é uma longa história. Se considerarmos um bom médico, que consegue ter uma taxa de sucesso de 90% no seu trabalho, não deveria ser recompensado por isso? Os artistas têm que se concentrar em criar algo único. E se o músico se dedica ao estudo do instrumento (seja qual for), a melhorar as suas canções, que depois contribuem para uma multidão de duas pessoas namorarem, rejubilarem, curtirem, aumentarem o volume do rádio no carro, meter em repeat no ipod, só temos que agradecer a essa gente, que criou tamanha mudança no mundo de uma ou de milhões de pessoas. Músico é profissão, felizmente. Quase que era preciso uma 13ª emenda! Dito isto, o primeiro pressuposto de quem cria é de se satisfazer. O resto é o fogo de artifício da Nossa Senhora da Agonia.